COMPOSIÇÃO DE DÍVIDA RURAL – CIRCULAR 46/2018 BNDES – NORMA AGENDI OU FACULTAS AGENDI PARA A INSTITUIÇÃO FINANCEIRA CREDENCIADA?
Produtores
rurais pessoas físicas ou jurídicas, inclusive suas cooperativas de
produção, têm ao seu dispor, a partir de 3.8.2018, o Programa BNDES para
Composição de Dívidas Rurais – BNDES Pro-CDD AGRO, disciplinado pela
Circular 46/2018.
Inicialmente a Circular é dirigida às
Instituições Financeiras Credenciadas pelo Banco, que estão autorizadas a
receber as manifestações de interesse dos devedores em compor suas
dívidas, o que deverá ocorrer até a data de 28.12.2018, com formalização
da operação de composição até 28.06.2019, conforme estabelecido no seu
item 7.1.
A indigitada Circular estabelece os
pontos principais do Programa a serem observados pelo interessado e pela
instituição financeira credenciada, remetendo a outros normativos do
Banco para sua formulação.
Diz seu item 2, por exemplo, que
produtores rurais pessoas físicas ou jurídicas, inclusive suas
cooperativas de produção, somente poderão ser beneficiários do Programa
se preencherem os requisitos de serem residentes e domiciliados no
Brasil ou, se o caso, terem sede e administração no País, comprovarem a
incapacidade de pagamento em consequência de dificuldade de
comercialização dos produtos, frustração de safra por fatores adversos e
eventuais ocorrências prejudiciais ao desenvolvimento da exploração e,
ainda, demonstrarem a viabilidade econômica das atividades desenvolvidas
na propriedade e capacidade de pagamento da operação de composição.
Estes são os requisitos subjetivos do negócio. Quanto aos objetivos,
deles tratam o item 3 que indica a dívidas que poderão ser liquidadas
com os recursos do Programa. No caso de crédito rural, somente as
operações de custeio ou investimento, desde que contratadas até
28.12.2017. Dívidas comerciais contraídas junto a instituições
financeiras, cujos recursos foram utilizados para liquidar dívidas
oriundas de crédito rural, também poderão ser alcançadas pela Medida.
Finalmente, dívidas contraídas junto a fornecedores de insumos
agropecuários, ou seja, débitos existentes em empresas comerciais, bem
assim dívidas existentes junto a instituições financeiras decorrentes da
emissão de CPR e de CDCA, também se enquadram como itens financiáveis
pelo Programa.
Tendo tais requisitos subjetivos e
objetivos da negociação, uma questão que merece exame mais detida sobre o
processo negocial diz respeito ao fato da Instituição Financeira
Credenciada se recusar a fazer o financiamento ao produtor rural ou sua
cooperativa, mesmo para aqueles que preenchem todos os requisitos do
Programa, e cuja manifestação de interesse de aderir ao seus termos foi
tempestivamente apresentada.
Noutras palavras, estariam as referidas Instituições diante de uma norma agendi ou de uma facultas agendi?
É relevante tratar do tema, pois já se tem notícia de prática nestes termos e o debate poderá chegar à esfera judicial.
A Circular em questão, no seu item 1,
quando trata do objetivo do Programa, utiliza-se da expressão “a
critério da Instituição Financeira Credenciada”, dando a entender que o
agente do BNDES, conhecido como Instituição Financeira Credenciada, tem a
faculdade de conceder ou não o novo crédito ao interessado.
Assim dispõe o referido item 1, da Circular 46/2018: “Concessão de novo crédito, a critério da Instituição Financeira Credenciada, para
liquidação integral de dívidas de produtores rurais ou suas
cooperativas de produção, originárias de uma ou mais operações da mesma
Beneficiária Final, por meio de composição de dívidas.” (gn)
A expressão a critério é que tem gerado a controvérsia.
Tomando por base a Lei 9138/95, diploma
legal que ficou conhecido como Lei da Securitização e que à época criou
Programa parecido de regularização de dívidas rurais, traz em seu artigo
5º que as instituições financeiras e os agentes financeiros integrantes
do Sistema Nacional de Crédito Rural, ficavam autorizadas a fazer o alongamento das dívidas originárias de crédito rural, nos termos da disciplina ali imposta.
Assim prescreve o indigitado dispositivo legal, in verbis:
“Art. 5º São as instituições e os agentes financeiros do Sistema Nacional de Crédito Rural, instituído pela Lei nº 4.829, de 5 de novembro de 1965, autorizados
a proceder ao alongamento de dívidas originárias de crédito rural,
contraídas por produtores rurais, suas associações, cooperativas e
condomínios, inclusive as já renegociadas, relativas às seguintes
operações, realizadas até 20 de junho de 1995”.
Como a Lei dizia que as instituições financeiras estavam autorizadas a
realizar tais negociações, a grande maioria dos credores passou a fazer
uma interpretação da norma no sentido de ser somente uma faculdade e
não um dever-agir, o que ocasionou a resistência na firmação dos
negócios, obrigando o interessado a buscar proteção judicial.
Em face do número expressivo de demandas
neste sentido, o Superior Tribunal de Justiça acabou editando a Súmula
298, através da qual a interpretação do art. 5º, da Lei 9138/95 deveria
ser feita no sentido de ser um direito do produtor rural e, então, um
dever da instituição financeira, proceder o alongamento da dívida que
preenchesse seus requisitos subjetivos e objetivos.
Diz a Súmula 298:
“O alongamento de dívida originada
de crédito rural não constitui faculdade da instituição financeira, mas,
direito do devedor nos termos da lei.”
O RECURSO ESPECIAL N. 166.592-MG
(98.0016498-7), da relatoria do Ministro Sálvio de Figueiredo, que
integra os fundamentos da mencionada Súmula, faz citação ao que já
havíamos escrito sobre o tema:
“Também não
discorda dessa posição Lutero de Paiva Pereira, ao assinalar: Ora, à luz
do que foi tratado em momento próprio, os agentes financeiros não têm
liberdade absoluta para transacionar as operações de crédito rural, já
que todas as questões vinculadas a esta linha de crédito passam pelo
crivo do Conselho Monetário Nacional. Noutras palavras, somente aquilo
que o Conselho autoriza é que pode ser realizado pelo financiador. No
caso em destaque, a própria Lei cuidou em autorizar o financiador a
promover a securitização dessas dívidas, já que sem esta permissão o
credor nada poderia fazer em proveito do devedor rural. Assim, se a
autorização veio é porque ela deve ser levada adiante, buscando-se o
interesse daquele que efetivamente necessita da medida que, no caso, sem
sombra de dúvida, é o produtor rural. Não se pode conceber a ideia, ao
menos no âmbito da sanidade, que a Lei em referência tivesse por meta
resolver o problema do credor, dando-lhe então o direito de escolher
este e reprovar aquele devedor que lhe pleiteasse a composição do seu
débito. Aliás, tomando-se por base as funções social e privada do
crédito rural, tratadas no capítulo 1.1 e 1.2 supra e os preceitos da
Lei n. 9.138/1995, a única razão a retirar do produtor rural o direito à
securitização de sua dívida está restrita ao fato de ele ter promovido o
desvio da finalidade do crédito ou, então, haver agido dolosamente na
condução do empreendimento. Exceção feita a estas irregularidades, o
pleito do produtor ao benefício legal não pode ser negado pelo credor
(PEREIRA, Lutero de Paiva. Securitização e Crédito Rural. Curitiba:
Juruá, 1997, n. 5.1, p. 77).”
Mudando o que deve ser mudado a Circular
BNDES 46/2018, ao comunicar as Instituições Financeiras Credenciadas
sobre a criação do Programa BNDES para Composição de Dívidas Rurais –
BNDES PRO-CDD AGRO, estabelecendo as condições do negócio, a despeito de
ter disposto que a concessão de crédito dar-se-á a critério da
Instituição Financeira Credenciada (item 1), não significa que ao
financiador está facultado negar o financiamento a quem preencher os
requisitos da norma.
Contrariamente a isto, a melhor exegese
do texto implica em reconhecer o direito reservado ao produtor rural
pessoa física ou jurídica, bem assim sua cooperativa de produção, de
compor seu endividamento nos termos propostos pela Circular, até mesmo
por que os recursos que serão empregados na negociação não são da
Instituição, mas sim do próprio BNDES.
Ademais, se a Circular estabeleceu
condições a serem satisfeitas pelo beneficiário e estas são preenchidas,
o acolhimento do pedido se impõe.
Também é preciso considerar que a
proposta do Programa é trazer solução ao endividamento de um setor
econômico de grande importância para o País, reconhecido pela própria
Lei Agrícola – Lei 8171/91 – como imprescindível à manutenção da ordem
pública e da paz social (art. 2º, inciso IV), o que torna a assistência
creditícia em questão um instrumento de proteção ao interesse social, a
saber, a produção de alimentos.
De outra parte, não seria despiciendo
agregar ao entendimento da proteção de que é merecedora a atividade
produtiva primária, o fato de a Constituição Federal dispor estar na
esfera de competência do Estado a organização do abastecimento alimentar
(art. 23, inciso VIII), abastecimento que somente é possível de ser
assegurado quando o setor primário se mostra produtivo. Sem sombra de
dúvida, um produtor rural endividado, cujo passivo muitas vezes o leva
às barras da Justiça, bem assim aos famigerados e odiosos cadastros de
restrição de crédito, se torna inoperante para oferecer ao Estado
produto rural que facilite organizar o abastecimento alimentar.
Por estas e outras razões, tendo por
base o que já foi objeto de discussão ao tempo da Lei 9138/95,
originadora da Súmula 298/STJ, a Circular BNDES 46/2018 deve ser lida e
interpretada como um direito do produtor rural e de suas cooperativas de
produção.
Assim, caso os beneficiários do Programa
tenham negado pelas Instituições Financeiras Credenciadas o deferimento
do pleito de composição de dívida, a alternativa de irem ao Poder
Judiciário sob o balizamento da Súmula destacada, salvo melhor juízo, se
mostra razoavelmente bem fundamentada.
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