PROFETAS DA CHUVA
Prestando atenção aos sinais da natureza, os profetas da
chuva de Quixadá, sertão cearense, se reúnem todo ano para checar
prognósticos de inverno ou de seca. E não anunciam boas chuvas para o período.
“CAJUEIRO ‘FULORANDO’ em janeiro, segurando maturi novo, é
sinal de inverno tarde”, diz José Clementino, o dedo apontando a árvore
carregada de frutos ainda verdes e flores em botão, à beira do açude
Cedro. Ele era um dos “senhores do tempo” reunidos no X Encontro dos
Profetas da Chuva de Quixadá, cidade a 175 km de Fortaleza, que ocorreu
no dia 15 de janeiro de 2006.
Clementino e os demais sertanejos observadores dos
fenômenos meteorológicos fazem parte de uma tradição agrária das mais
antigas da civilização humana. Guardam na memória experiências que vêm
de muito tempo, de quando a vida dependia exclusivamente da agricultura e
as condições climáticas eram fundamentais à sobrevivência da
comunidade. A previsão do tempo pela observação dos astros, das plantas,
do comportamento dos animais está presente num livro como As geórgicas,
do poeta latino Virgílio (século 1 a.C.), obra erudita que influenciou
os popularíssimos livrinhos editados em Portugal desde a Idade Média e
que chegaram, quase do mesmo jeito, até os dias atuais, no Nordeste
brasileiro – os Lunários perpétuos. São eles as matrizes escritas que
ainda orientam os profetas da chuva de Quixadá.
O calor é intenso nessa cidade cearense rodeada por
monólitos majestosos, fósseis de uma montanha que ocupava parte da
região, à margem de um lago salgado, que secou muito antes de a
humanidade nascer. A beleza dessas pedras erodidas fez com que o IPHAN
(Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) tombasse, em
2004, os monólitos de Quixadá como patrimônio natural. A rampa formada
pela beira das rochas puídas pelo tempo é também um lugar perfeito para
esportes radicais, especialmente o vôo livre. Desde 1988, Quixadá sedia
uma das etapas do campeonato mundial. Além do turismo ecológico e dos
esportes radicais, a cidade acolhe visitantes que vêm de longe venerar o
santuário de Nossa Senhora Rainha do Sertão, no topo da serra do
Urucum.
Quixadá também é a terra de Rachel de Queiroz, que ali
viveu a vida sertaneja na sua fazenda Não Me Deixes. Próximo da cidade
fica o açude Cedro, também um patrimônio preservado: foi construído
ainda no Império e inaugurado há exatos 100 anos. Por isso, o Encontro
dos Profetas foi bem ali, junto ao paredão do açude, talhado bloco a
bloco, pedra por pedra, pelas mãos de escravos.
João Augusto de Sousa não é profeta, mas participa de
todos os encontros, para orientar-se no plantio de sua minguada lavoura.
Mas, como a maior parte do povo do campo, ele também observa a
natureza, sabe ler os sinais. “De 1970 pra cá, tudo mudou. E agora, no
século 21, acabou de mudar foi tudo. Eu não sei de nada, mas pelas
carreiras do tempo, eu sabia que este ano ia ser igual ao que nós
passemo, ou mais fino, né? Mas vamos esperar...”, diz ele, desencantado
com o trabalho que exerceu a vida inteira. “Sou um produtor rural
fraquim, nasci os dentes trabalhando no mato.
Mas deixei a agricultura, que não dá mais não. Dá não,
senhora. É melhor guardar o dinheiro e comprar o mantimento, que sai
muito mais barato. Planto uma coisinha só pra comer verde, que eu acho
bom.” Seu João senta bem na frente, ouvido apurado, curioso para saber
se, segundo os prognósticos dos profetas, vai adiantar ou não plantar
“pra comer verde”, isto é, legumes e verduras nas várzeas úmidas, tudo o
que restou do seu antigo roçado.
O encontro foi aberto com cantoria de viola, homenagens ao
açude e depoimentos de pesquisadores, como a antropóloga da Universidade
do Arizona Karen Pannesi, que há mais de um ano convive com os
profetas, acompanha-os ao campo, toma nota de sua ciência empírica. Um
dos homenageados por ela é Francisco Mariano Filho, o Chico Mariano, que
tanto observa os astros para saber de inverno ou verão quanto para
dizer sobre a personalidade de quem conversa com ele. “Você é de sol,
nasceu de dia, não foi?”, diz o profeta, acertando.
Ele diz, sem hesitar, como pensa que será o inverno deste ano:
“O inverno é mesmo forte em março, o preparo das nuvens não está
acontecendo pra ter inverno em janeiro. Qualquer ciência, nós estamos
começando ainda. Eu queria ter o saber do cachorro, e eu não tenho.
Chego na casa dele, cadê fulano? A esposa diz, foi pro mercado, foi pra
tal canto. Aí eu vou perguntando, cê viu fulano? O outro diz, parece que
eu vi, passou acolá. Eu saio mais o cachorro dele, o cachorro não
pergunta a ninguém, vai direto pra donde está o dono”, filosofa. Chico
Mariano, como seus colegas, tem a natureza como enciclopédia viva, dela
nutre o corpo e a alma. “Cacei pouco, porque fui prestando atenção à
natureza, a sabedoria dela, como é grande”, diz o velho, olhos
marejados. Mariano começou a observar o tempo ainda menino. “Por perca
de roçado. O papai se mudava, quando o tempo era ruim. Isto é cultura
antiga, há mil anos que o homem tem estas experiências. Muitos pássaros,
muitas coisas que conheci, hoje são difícil a gente ver. Mas a natureza
não mudou, nós é que muda, é que aprende mais, conversa mais. Mas a
natureza foi formada antes, viveu milhões de anos só, sem o homem.”
Entre tantos “cientistas” matutos, um engenheiro,
economista e astrônomo está ali para aprender, como diz, sem falsa
modéstia, apesar dos mais de 30 anos dedicados à observação do clima. É
Caio Lóssio Botelho, uma referência nacional nos estudos climáticos.
“Das dez reuniões, nunca perdi nenhuma. Estes homens prestam um serviço
inestimável não só à cultura, mas até à ciência.
O estudo da previsão das secas é uma necessidade. A seca
não deve ser estudada apenas com a razão, mas também com a intuição. Por
isso valorizo todos os profetas que se reúnem neste momento. O Homo
sapiens tem dois instrumentos na busca da verdade. Um é a razão, o
estudo crítico da reflexão do hemisfério cerebral direito. O outro é o
da intuição, instrumento que faz parte da estrutura biofísica e
psicológica, e que tem sua razão de ser.
A intuição tem levado aos homens uma série de informações
em benefício da humanidade. O próprio Einstein utilizou a intuição para
fechar a Teoria da Relatividade.”
Caio Lóssio não contou apenas com o saber acadêmico para
embasar suas observações. “Elas foram fruto da minha vivência no sertão
do Ceará. Meu pai era juiz e serviu em vários municípios, desde o Cariri
até a faixa do litoral. E desde jovem acompanhei o sofrimento do
agricultor, e aquilo calou profundamente no meu espírito.
Resolvi me dedicar de corpo e alma à pesquisa da seca. E
tenho a coragem moral de declarar que os profetas, realmente, têm
contribuído profundamente para uma evolução da perspectiva de projeção
de seca e de chuva de nossa quadra estacional”, diz. Sobre os
prognósticos para este ano, Lóssio comunga com os observadores
sertanejos. “O hemisfério sul, pela primeira vez, rompeu o equilíbrio
ecológico. Até 2005, você não tinha ouvido falar de ciclone e outros
fenômenos de natureza física no hemisfério sul. Isso não existia, foi
decorrência da imprudência do homem. O desequilíbrio no hemisfério norte
vem desde o século 19, com a Revolução Industrial. Por conta disso,
tive que mudar meus cálculos. Mas afirmo que o inverno deste ano começa a
partir de 21 de março, com a passagem do equinócio, e deve se estender
por todo o mês de abril, maio e, quem sabe, até o mês de junho”, diz.
O PROFETA JOSÉ CLEMENTINO de Almeida vive no município de
Ocara, próximo a Quixadá, mas participa dos encontros desde a primeira
vez. Para ele, este ano vai ser de um “invernim mei lá e mei cá”.
Clementino afirma que inverno bom, só de 2010 em diante. “Eu tenho
experiência com o vento, no quarto que eu durmo. Ao meidia, almoço, me
deito, abro um radim que eu tenho lá. A porta de entrada fica aqui, aí o
vento, pá! Eu digo, quase cochilando, ai, meu Deus do céu! Esta porta
não é pra fechar à força, é pra abrir. Quando está próximo de chover, eu
abro a porta, a porta bate na parede, pá-pá-pá. É sinal que vem chuva,
comadre”, diz o profeta, que além do vento também tem experiência “com
os passarim, com sapo, com as lagartas, com borboleta, com tudo quanto
tem em riba do chão”.
Clementino conta as observações que fez, para abalizar sua
opinião: “O Natal deu uma boa experiência com o inverno, mas deixa lá,
que o Natal é do ano velho.
Fui pegar experiência da virada do ano, não gostei. A
barra da virada do ano foi quase nada, deu um fuá no tempo, só um
encapamento nas nuvens. Esperei o nascer do sol. Quando o sol apontou,
olhei lá, lá onde ele tava era uma roda grande, do tamanho de uma
tarrafa de 12 palmos, não tinha uma nuvem. Isto, num vermelhão da cor de
sangue. Eita, que eu não esperava isso! Sinal de inverno bem fraquim. A
estrela-d'alva [o planeta Vênus] passou pro nascente, e ela não resulta
bem lá, nós não temos um inverno que preste. Pode escrever que eu
assino. Eu não estudei pra isso, mas tenho o dom que Deus me deu”, diz.
Dos profetas presentes naquela manhã de sol ardente, só um
tinha menos de 70 anos e não era agricultor, o contabilista José
Erismar Nobre da Silveira. “Mas sou filho de agropecuarista, fui criado
no sertão.
Os anos de estiagem maltratavam a gente, e eu,
conversando com as pessoas de conhecimento, comecei a observar, isto
está com uns 30 anos. Mas estou aprendendo, ainda”, diz ele. Erismar
observa as nuvens, a neblina em certos dias, as noites de garoa do mês
de setembro. Também observa as estrelas, especialmente a estrela-d'alva,
“que é muito importante. Se ela fica assim chorosa, com uma nuvenzinha
muito rala, o inverno é pouco”. Do que farejou nos caminhos do céu,
Erismar diz que haverá chuvas localizadas em fevereiro, mas em março o
inverno se confirma. “Em abril, me dá uma preocupação, porque deu um
período de estiagem, pelas minhas experiências. Mas se chover no 28 de
fevereiro ou 1º de março, a estiagem vai ser pouca. Em maio chove, e é
capaz de o inverno ir até a fogueira de São João.”
A platéia, especialmente os pequenos produtores
presentes, parece suspirar com certo alívio. Mas entra em cena um dos
mais famosos profetas do Quixadá, Chico Leiteiro, que desde os dez anos
de idade lê o movimento dos astros, as folhas das plantas, o vôo dos
pássaros, o rastro dos bichos da terra, que lhe dizem tão claramente do
tempo que virá como se estivesse munido da mais fina tecnologia. Chico
Leiteiro só estudou o bastante para devorar velhas edições do Lunário
perpétuo. Ele não costuma errar a profecia.
Para 2006, ele prevê uma quadra invernosa “mais ou
menos”. Quem lhe contou foram os passarinhos, especialmente os
rouxinóis, “que já estão cantando, fazendo ninho. O gavião vermelho já
está se aproximando do sertão, é sinal que a chuva não demora. Os tetéus
também já estão fazendo enxurrada, cantando, [o tetéu] é o melhor
profeta que nós temos. Meio-dia, de tarde, eles revoam, téu-te-téu, é
sinal que o tempo vai mudar. Mas ninguém nunca pode divulgar tudo que a
gente vê, que as experiências que temos são muitas e não gosto de dar
notícia ruim. Confio que há de ter inverno, porque a era de seis [data
terminada em seis: 1996, 2006 etc.] nunca negou. E que Deus abençoe todo
mundo”, diz Chico Leiteiro, se despedindo.
CLIMA DE ANSIEDADE COLETIVA
O profeta Chico Leiteiro, que tudo vê, não gosta de dar
notícia ruim. Está aí uma pista para se entender a real importância dos
profetas
da chuva para os agricultores do sertão nordestino. Mais
do que fazer previsões acertadas, o que se espera desses leitores da
natureza,
no fundo, é a capacidade de mitigar a ansiedade que se
forma diante da incerteza do clima. Para isso, prognósticos crípticos,
ambíguos
e até omissões podem ter um valor muito maior do que as
probabilidades meteorológicas. Essa é a opinião do antropólogo Renzo
Taddei,
que já estudou o simbolismo da água e da chuva no sertão
cearense, pela Universidade de Columbia, em Nova York, e atualmente
colabora com pesquisas da Funceme – Fundação Cearense de Meteorologia e
Recursos Hídricos.
Os agricultores do sertão se relacionam com os profetas da chuva do mesmo modo que com a meteorologia oficial?
Nos dois casos, é uma relação bastante difícil. Ambos
canalizam para si uma grande ansiedade coletiva. Só que a meteorologia
não administra bem essa ansiedade, porque não comunica de forma clara o
que faz e o que se pode esperar dela, então as expectativas da população
acabam sendo pautadas pelo discurso profético. Se um profeta diz que
pode prever exatamente o dia em que vai chover, espera-se
que a meteorologia faça o mesmo, ou melhor.
E de que maneira os profetas administram essa ansiedade?
Eles têm uma tendência a fazer bons prognósticos. Não que
sempre o façam – este ano é um exemplo em que boa parte deles anunciou
um prognóstico ruim. Mas em 1997, 1998 e 2005, todos com
chuva bem abaixo do normal, a maioria anunciou boas chuvas. É
compreensível: há diversos casos de profetas que foram acusados de
causar a seca, apenas por tê-la prognosticado.
Preferem errar a dar notícia ruim.
Erram, mas não perdem o reconhecimento dos agricultores.
Até porque às vezes não dá nem para dizer se alguém errou ou acertou
a previsão. Se um diz que o inverno vai ser “velhaco” ou “desmantelado”, é difícil traduzir isso em chuvas.
De onde vem esse conhecimento empírico do clima e como ele pode ser utilizado na viabilização do semi-árido?
Existem métodos usados pelos profetas do Nordeste que já
eram conhecidos no Oriente Médio há milênios, que provavelmente chegaram
à Península Ibérica com os árabes e os judeus, e de lá vieram para as
Américas. No México e na Espanha, por exemplo, é comum o método das
cabañuelas, usado pelo profeta Chico Mariano em Quixadá: alguns dias de
estação seca são indicadores para a estação chuvosa. No caso de Chico
Mariano, o 1º de julho representa janeiro do ano seguinte.
Mas não dá para dizer se “esse conhecimento empírico” tem
potencial porque não há um conhecimento único. Existem diversos métodos
populares de prever o clima. Enquanto o profeta chamado Epifânio faz
prognósticos baseado na interpretação de sonhos, Chico Leiteiro observa o
comportamento dos insetos e animais, Paulo observa estrelas e a posição
da sombra do sol durante a estação seca. Alguns desses métodos têm
valor de fato, e deveriam ser melhor estudados no mundo inteiro.