O carneiro no divã
Era
uma bela fazenda deixada pelo marido para a viúva que, agora, morava
com Lurdinha, uma moça acompanhante e mais a cozinheira. A viúva gostava
de animais e a moça gostava de tocar piano. Havia um carneiro
grandalhão, meio desajeitado, mas altamente carinhoso com a empregada e
com a babá do vizinho. Ah! Ele também gostava muito de ... música. Nem
bem ouvia os primeiros acordes saídos das mãos de Lurdinha e ele já ia
se aproximando, respeitosamente. Achegava-se ao piano, deitava e fingia
dormir, ouvindo os sons maravilhosos que flutuavam na sala grande. Era
sempre a “sua” música e todos podiam dizer que havia um claro sorriso em
sua boca.
Passados
uns tempo, sem qualquer explicação, o carneiro começou a atacar,
furiosamente, a cozinheira e também a babá do vizinho. Antes, ele achava
que a cozinheira e a babá eram dois xodós, mas agora parece que tinham
virado o capeta! O carneirão só queria saber mesmo da moça do piano.
Ora, um animal desse tamanho, furioso dentro de uma sala, não é coisa
boa para os móveis tão antigos! A viúva, tristemente, ficou de coração
apertado.
O
comportamento do carneiro, porém, ficava ainda pior e virou caso de
psiquiatra. Era preciso chamar um médico para explicar essa estranha
reviravolta na vida do ex-manso e ex-carinhoso animal.
Numa
manhã, chegou o médico para ver o furioso perto do piano. Era apenas
uma pessoa a mais; um novo estranho para o carneiro que, num relance, já
não gostou do que viu. Franziu a testa, para mostrar que não tinha boas
intenções com o intruso. O médico, um veterinário, pegou a maleta e foi
se aproximando, mostrando que não tinha medo de cara-feia, mas o bruto
escavou o chão e partiu para cima do doutor que escapuliu pela porta,
rapidamente trancada pela empregada.
Em
segundo tentativa, bem protegido pelo divã, o médico analisou o tamanho
do bruto e viu que não dava para encarar. Era preciso usar a psicologia
própria dos carneiros.
Começou
ouvindo ouvido o relatório completo dos muitos ataques e cenas
incompreensíveis. Pediu, então, para a moça sentar-se e começar a
dedilhar o piano. Aconteceu o óbvio: o carneiro sorriu e logo se
aconchegou no lugar de sempre, para ouvir a sublime melodia. Afinal,
estava sozinho na sala.
De
longe, o médico tudo observava. Pegou um punhado de ração e mandou
colocar perto do carneiro que recebeu com satisfação. O médico anotou:
bons movimentos, olhos sadios, esticava as patas, balançava o rabo,
torcia o pescoço, os olhos vasculhavam o ambiente, comeu bem, ouvia bem.
Não tinha nada doendo. A fisionomia era de calma angelical, nada de
capeta por perto. Depois de bem observado, o doutor chegou a um
diagnóstico:
- Não é raiva! É apenas brabeza. Ou espírito-ruim. Doença zero!
Pensou e deu a ordem:
- Agora é hora de testar os reflexos psicológicos. Pediu
para a empregada entrar no recinto. O carneirão ergueu a cabeça diante
da intrusão sem justa causa, perturbando a musicalidade do recinto. A
empregada foi se achegando e o carneiro foi se arrepiando, o costado
tremia, os olhos foram se arregalando, quando o acorde chegou ao si
bemol, a velha senhora saiu correndo perseguida pelo carneiro,
conseguindo escapulir pela porta salvadora.
- Ah! doutor, não volto mais lá, nunca mais!
O
médico precisava pingar os “is” e pediu para a babá do vizinho entrar
na sala. O carneiro, que já havia se deitado, novamente ergueu o
pescoço, aprumou o olhar valentão, ajeitou a pata para dar o bote e saiu
em perseguição da pobre coitada que logo desapareceu pela porta da
salvação.
- Esse bicho está mesmo com o diabo!
O médico coçou a orelha, ficou interessado e perguntou:
- O bicho está é cheio de razão. O que poderia ter provocado esse esquentamento todo? Essa fervura bem apanhada?
A babá respondeu, timidamente:
- Acho que foi no dia em que eu vim visitar e trouxe o Michel...
- Que raio de Michel é esse?
- É um outro carneirinho, bem novinho.
- Pois vá buscar o tal Michel, para entrar no teste.
A
babá foi e voltou, trazendo o fofinho no colo. Era uma miniatura
enfeitada com coleira e lacinho. O próprio médico resolveu desafiar o
carneirão, entrando na sala com o fofinho, mas nem teve muito tempo,
pois o valentão empinou-se bem mais que antes, com os olhos esbugalhados
pelo ódio, desembestando para cima do doutor que, já sabendo, estava
bem pertinho da porta. Agora, o bruto não voltou para o piano. Ficou por
ali, perto da porta, pronto para um novo ataque.
- Xii. O carneirão virou bicho, mesmo! Ele viu o cruz-credo, o provocador dessa encrenca toda.
- E vai ter jeito, doutor? - perguntou a proprietária, preocupada com os móveis e com a antiga calma do casarão.
- Claro! - acalmou o veterinário. Para tudo há um jeito, sempre.
O
médicou misturou uma ração especial com sedativos fortes. Mandou
empurrar para perto do carneirão. O animal estava mesmo com fome, cheio
de razão e comeu. Logo depois, estava sonolento, embalado pela boa
música do piano, agora num fá sustenido.
-
Pronto, o animal está quase curado. Agora é entrar e fazer amizade com
ele. E desapareçam com essa miniatura de carneiro, pois o grandão está
com ciúme de derreter.
Todos se achegaram, alisaram o animal.
- Como vai ser, daqui para frente, seu doutor?
-
Bom, é o seguinte: durante os próximos quatro dias, apliquem o
tranquilizante na comida. Aproveitem para se encostar, fazer carinho,
coisa e tal. Até a babá do vizinho pode entrar, com roupa nova, sem
cheiro do fofinho. O carneiro vai se acostumar.
Saboreando o cafezinho quente na porcelana, o médico deu sua opinião final:
- Eita carneiro esperto! Ouvir piano é só com ele, mesmo. Não quer nenhum concorrente na vizinhança.
Adaptado de “O galinhista”, Edson Pereira, Goiânia, 2010, Funape, IPTESP, p. 31)
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