CAMPANHA » Seca histórica no semiárido do país faz água virar moeda eleitoral
Campanha lançada este ano às vésperas da eleição quer pôr fim a uma das práticas mais torpes da política no semiárido do país, que enfrenta a pior seca nos últimos 30 anos: a troca do voto pela água. Com o slogan “Não troque seu voto por água. Água é direito seu”, a Articulação do Semiárido (ASA), responsável pela campanha, dá o recado direto, uma vez que a lógica tacanha da compra de votos pode muitas vezes ser sutil. “Quem tem o poder define onde atender primeiro e isso penaliza muitas famílias por interesses políticos”, detalha a coordenadora da ASA em Minas, Valquíria Smith. O ideal, segundo ela, é que as ações sejam mais do que emergenciais. “Tem que ter água de graça e de qualidade. É a oportunidade de politizar esse debate”, afirma Valquíria. A ASA é uma rede formada por cerca de mil organizações da sociedade civil que atuam na gestão e no desenvolvimento de políticas para o semiárido.
Até o momento, 115 municípios mineiros decretaram situação de emergência devido à seca. A região do semiárido brasileiro é uma das maiores e mais populosas do mundo. Cerca de 22 milhões de pessoas vivem na área, o que corresponde a 12% da população do país, em 10 estados, sendo nove do Nordeste e parte de Minas Gerais. Em Minas, o semiárido compreende as regiões Norte e Vale do Jequitinhonha, onde vivem mais de 3,5 milhões de pessoas.
Uma das localidades mais atingidas pela atual estiagem é a Serra Geral de Minas, que abrange Porteirinha, Pai Pedro, Mato Verde, Monte Azul, Mamonas e Espinosa. O promotor eleitoral de Porteirinha, Ali Ayoub, responsável por cinco municípios, está vigilante: “A água realmente é um elemento muito importante na vida de qualquer cidadão. Somente quem não tem sente a falta que ela faz. Se alguém prometer água em troca de voto, isso constitui infração e crime eleitoral e tem que ser investigado”.
Nas eleições municipais de 2008, uma denúncia de compra de votos com a doação de caixa d’água provocou a cassação do prefeito eleito em São João do Paraíso, no Norte de Minas, José de Souza Nelci (PR), pelo Tribunal Regional Eleitoral (TRE). Um novo pleito foi marcado e Nelci foi impedido de concorrer. O agricultor Adrião Pereira de Oliveira, pai de oito filhos e morador do distrito de Barrinha foi o autor da denúncia. “Durante a campanha, veio uma pessoa aqui e falou: 'Vou te dar a caixa-d’água e gostaria que você votasse no Souza’”, lembra Adrião, que, prestou depoimento e declarou que não chegou a prometer o voto, embora tenha recebido a caixa d’água.
Em sua defesa, o ex-prefeito José de Souza Nelci rebateu as acusações, sustentando que a prefeitura distribuía material de construção e outros benefícios para a comunidade carente, mas dentro de um trabalho social contínuo, sem nenhuma relação com a campanha política. Disse ainda que Adrião Pereira recebeu a caixa-d’água de um integrante de uma igreja evangélica, que não tinha relação com sua campanha. “Minha cassação foi a coisa mais injusta que já vi na política”, alegou o ex-prefeito.
O coordenador do Centro de Apoio às Promotorias Eleitorais de Minas Gerais, promotor Edson Resende, ressalta que as denúncias que chegam ao conhecimento do Ministério Público são apenas uma amostra. “O fato de ter 10 denúncias, por exemplo, não significa que de fato tenha apenas isso”, pondera Resende. O promotor destaca que é recorrente candidatos apresentarem essa atitude no período eleitoral. “São fatos que lamentavelmente ocorrem”, afirma.
O promotor eleitoral Ali Ayoub reforça que os promotores da região estão atentos. “Acredito que a população do Norte de Minas já está bastante esclarecida sobre a necessidade de não trocar benefícios de qualquer natureza pelo voto. Mas é importante que todas as pessoas, ao tomar conhecimento de qualquer irregularidade, levem ao conhecimento do Ministério Público ou da polícia. Com os casos chegando ao conhecimento do Ministério Público, serão tomadas providências imediatamente”, assegura Ayoub.
Caminhão-pipa em curral eleitoral
A coordenadora da ASA, Valquíria Smith, explica que a motivação da campanha é a junção de dois fatores: uma das maiores secas do semiárido nos últimos 30 anos e o período eleitoral. “A troca de água por votos sempre foi prática no semiárido brasileiro. O caminhão-pipa vai ao local que tem um padrinho político ou interesses eleitorais”, denuncia. Enquanto a realidade não é modificada, com soluções que minimizem o problema da seca, como a construção de cisternas, o caminhão-pipa é uma necessidade nos períodos de estiagem.
A campanha da ASA convoca as famílias agricultoras, as organizações que atuam no semiárido e as comissões municipais da ASA nos nove estados do Nordeste e em Minas Gerais a se mobilizar para evitar o crime eleitoral. No fim de maio, a ASA também encaminhou um ofício à presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha, solicitando o apoio da Corte à campanha. Oferecer benefícios em troca de água é crime pela Lei Federal 9.840/99, conhecida como Lei de Combate à Corrupção Eleitoral.
A coordenadora nacional da ASA, Marilene de Souza, conhece bem a realidade do Norte do estado, pois nasceu na região. Foi responsável pelo projeto de construção das cisternas para captação de água de chuva, modelo desenvolvido pela ASA. A iniciativa visa permitir aos moradores das comunidades rurais de regiões semiáridas acumular água que possa garantir o abastecimento durante o período crítico da estiagem. “Durante mais de 40 anos, o semiárido foi marcado pela troca de votos. Nesta época, em regiões como o Norte de Minas, centenas de comunidades rurais sofrem com a falta de água, ficando na dependência do caminhão-pipa. Com isso, cria-se uma oportunidade para os maus políticos trocarem água pelo voto. É isso que queremos impedir com a campanha”, afirma a coordenadora.
Marilene destaca que o objetivo da mobilização é “conscientizar as pessoas que a água é um direito delas e que não pode ser trocada por alinhamento político ou por votos”. Ela ressalta que as atenções dos envolvidos na campanha se voltam para as regiões mais castigadas pela seca, onde, ao mesmo tempo em que centenas de pessoas lutam para conseguir água que chega pelo caminhão-pipa, candidatos a prefeito e a vereador se engalfinham para conquistar votos, muitas vezes na base do vale-tudo eleitoral.
No Piauí, a troca de votos por benefícios preocupa tanto que a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) tem um comitê de combate à corrupção eleitoral – o estado é a unidade da federação com o maior número de prefeitos cassados na Lei Ficha Limpa. Até o início do mês foram mais de 55. Este ano, o Ministério Público estadual também elaborou cartilhas de conscientização. Também vai realizar até setembro palestras em escolas, associações e sindicatos, com a ajuda de promotores de Justiça nos municípios.
Pacote estiagem
No começo do ano, o governo federal anunciou um pacote de R$ 2,7 bilhões para enfrentamento aos efeitos da seca no Nordeste e em Minas. Desse total, R$ 200 milhões são destinados ao pagamento do Bolsa Estiagem, programa voltado aos pequenos agricultores, e R$ 500 milhões para o Garantia-Safra. Foram recuperados ainda, 2,4 mil poços artesianos ao custo de R$ 60 milhões. Para a Operação Carro-Pipa, foram destinados R$ 164 milhões, beneficiando mais de 2 milhões de pessoas.
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