Coisas do Sertanejo
O BODE CHEIRADOR
Havia
  um povoado entre Coxixola e Zabelê, nos antigos tempos em que 
lagartixa  e calango saboreavam um bom papo no tronco da macambira. O 
velho  fazendeiro, turrão como ele só, havia descoberto uma maneira para
  ninguém mais roubar suas galinhas, porcos, cabras e ovelhas, sem levar
 a  justa palmatória da justiça. Ele escolheu um bodete com cara de  
malandro desconfiado, que vivia cheirando tudo no curral e nos  
arredores. O dito animal era um especialista nos cheiros das coisas que 
 transitavam perto da casa e podia distinguir esse odor em qualquer 
outro  lugar. 
Nas
  empreitadas de cerca, muro, açude e poço, o velho fazendeiro levava o 
 bodete que logo começava a cheirar as botas, sandálias ou alpercatas 
dos  trabalhadores. Quando reconhecia um cheiro, fazia sua cabriolice  
natural e o fazendeiro logo dava o tom:
-
  Ah, ah! - o bodete está dizendo que você anda cabulando o serviço,  
trançando lero nos terreiros da casa-grande. É hora de se comportar,  
homem, e trabalhar, pois o bodete não deixa nada escapar!
Assim,
  a fama do animal crescia. Quando desaparecia alguma galinha, pato,  
ganso, marreco, cabrito ou carneiro, lá ia o fazendeiro e seu fiel  
bodete até a delegacia, cheirar sapatos dos presos nos últimos dias. Era
  tiro e queda: se o ladrão ali estivesse, o bodete fazia o trabalho da 
 polícia, entregando o larápio, na hora!
- Ôxa! Com um bode farejador desses, quem é que precisa de cão policial? - comentavam no povoado.
O
  certo é que os surrupiadores dos bens alheios foram montar praça em  
outra freguesia, dando sossego no povoado, ou - ao menos - à terra do  
velho fazendeiro.
Para
  quebrar a monotonia, Seu Totonho resolveu fazer uma vaquejada 
sertaneja  e convidou o mundo inteiro. Chegou gente de todo canto e 
muitos nem  cavalo tinham. Foi, então, que alguns desavisados, talvez 
por  traquinagem, roubaram uma bonita égua do velho fazendeiro, tendo em
  vista desfilar na festança na conquista de alguma donzela, como se bom
  corredor fosse da dita vaquejada.
-
  Pois isso não fica assim, não! - garantiu o velho turrão. É uma 
desonra  roubar bem uma bela égua de meu terreiro. Vamos buscar a 
roubada,  esteja onde estiver.

Começou
  o trajeto singular, pela delegacia, outras fazendas, a animália na  
feira, mas nada! Enquanto isso, mais gente ia se apinhando para a  
vaquejada.
Então,
  o velho fazendeiro entrou no recinto, cheio de pompa, escopeta e 
punhal  comprido, cartucheira cruzada no peito, chapéu de coco, levando o
  bodete numa corda.
-
  Vamos fazer uma vistoria na gente decente dessa festança. Que os 
justos  não tenham medo, pois o meu bode não erra e vai achar o desafeto
 se ele  aqui estiver.
Para
  abreviar a trabalheira, os cavaleiros fizeram fila e o bodete foi  
cheirando bota por bota. Havia bota bordada, bota trançada, bota  
pintada, bota de jacaré, bota de cobra, bota brilhosa, bota estrelada,  
bota cintilosa, e tantas mais.
Lá
  quase no final da fila, houve um diz-que-diz-que, um fala-fala, e o  
bode acabou ganhando liberdade para ir cheirar a bota de uma dama cujo  
perfume abarcava quase a pista inteira de vaquejada. O bodete achegou-se
  e começou a saborear daquele perfume jamais visto no terreiro ou na  
vida, e foi se engraçando. A moça achou a maior graça, pois sabia da  
fama do velho sabujo caprináceo e foi deixando, até porque todo mundo  
não tirava os olhos da cena empolgante. A princesa despejava um sorriso 
 estonteante para todos, enquanto o bodete morria de amores, na  
cheiração.
O
  certo é que o bodete esqueceu-se do trabalho, inebriado pelo cheiro  
estonteante da moçoila. O velho fazendeiro saiu arrastando o animal pela
  corda, em direção do tumulto dos homens em discussão.
Levou
  o bode para uma bota masculina, para ele demonstrar sua sabença, mas o
  animal teve uma inspiração divina e se mostrou muito zangado,  
pinoteando, resfolegando, rangendo os dentes.
- Xiii! o bode está com paixonite! - sentenciaram os mais velhos.
Nesse
  ponto, para acabar a confusão, um famoso corredor das vaquejadas e dos
  botequins achegou-se e esnobou a linda bota de cano longo:
- Cheira aí, ô, para mostrar que sou macho e direito.
O
  bodete ergueu o sobrolho, empinou a trunfa, aquele amarfanhado monte 
de  cabelos na testa, arrepiou a crina, bufou com cara feia e cravou os 
 dentes na botina, arrancando um grito do esnobe vaqueiro.
Ninguém
  entendeu nada, mas o bodete continuou seu trabalho, mordendo todas as 
 botinas de macho que encontrava pela frente. A cada mordida, dava um  
sorriso de satisfação, pois estava enfeitiçado pelo doce aroma  
almiscarado da jovem moça. Vingava-se nas botas enfeitadas dos machos.
Daí
  para frente, o bodete transformou-se em bode normal, sonhador, sempre 
 gastando longo tempo cheirando as fêmeas do curral, para ver se  
descobria, de novo, o doce aroma que o havia enfeitiçado.
 
 
Nenhum comentário:
Postar um comentário