segunda-feira, 3 de setembro de 2018

COMPOSIÇÃO DE DÍVIDA RURAL – CIRCULAR 46/2018 BNDES – NORMA AGENDI OU FACULTAS AGENDI PARA A INSTITUIÇÃO FINANCEIRA CREDENCIADA?


     

Produtores rurais pessoas físicas ou jurídicas, inclusive suas cooperativas de produção, têm ao seu dispor, a partir de 3.8.2018, o Programa BNDES para Composição de Dívidas Rurais – BNDES Pro-CDD AGRO, disciplinado pela Circular 46/2018.
Inicialmente a Circular é dirigida às Instituições Financeiras Credenciadas pelo Banco, que estão autorizadas a receber as manifestações de interesse dos devedores em compor suas dívidas, o que deverá ocorrer até a data de 28.12.2018, com formalização da operação de composição até 28.06.2019, conforme estabelecido no seu item 7.1.

A indigitada Circular estabelece os pontos principais do Programa a serem observados pelo interessado e pela instituição financeira credenciada, remetendo a outros normativos do Banco para sua formulação.
Diz seu item 2, por exemplo, que produtores rurais pessoas físicas ou jurídicas, inclusive suas cooperativas de produção,  somente poderão ser beneficiários do Programa se preencherem os requisitos de serem residentes e domiciliados no Brasil ou, se o caso, terem sede e administração no País, comprovarem a incapacidade de pagamento em consequência de dificuldade de comercialização dos produtos, frustração de safra por fatores adversos e eventuais ocorrências prejudiciais ao desenvolvimento da exploração e, ainda, demonstrarem a viabilidade econômica das atividades desenvolvidas na propriedade e capacidade de pagamento da operação de composição. Estes são os requisitos subjetivos do negócio. Quanto aos objetivos, deles tratam o item 3 que indica a dívidas que poderão ser liquidadas com os recursos do Programa. No caso de crédito rural, somente as operações de custeio ou investimento, desde que contratadas até 28.12.2017. Dívidas comerciais contraídas junto a instituições financeiras, cujos recursos foram utilizados para liquidar dívidas oriundas de crédito rural, também poderão ser alcançadas pela Medida. Finalmente, dívidas contraídas junto a fornecedores de insumos agropecuários, ou seja, débitos existentes em empresas comerciais, bem assim dívidas existentes junto a instituições financeiras decorrentes da emissão de CPR e de CDCA, também se enquadram como itens financiáveis pelo Programa.
Tendo tais requisitos subjetivos e objetivos da negociação, uma questão que merece exame mais detida sobre o processo negocial diz respeito ao fato da Instituição Financeira Credenciada se recusar a fazer o financiamento ao produtor rural ou sua cooperativa, mesmo para aqueles que preenchem todos os requisitos do Programa, e cuja manifestação de interesse de aderir ao seus termos foi tempestivamente apresentada.
Noutras palavras, estariam as referidas Instituições diante de uma norma agendi ou de uma facultas agendi?
É relevante tratar do tema, pois já se tem notícia de prática nestes termos e o debate poderá chegar à esfera judicial.
A Circular em questão, no seu item 1, quando trata do objetivo do Programa, utiliza-se da expressão “a critério da Instituição Financeira Credenciada”, dando a entender que o agente do BNDES, conhecido como Instituição Financeira Credenciada, tem a faculdade de conceder ou não o novo crédito ao interessado.
Assim dispõe o referido item 1, da Circular 46/2018: “Concessão de novo crédito, a critério da Instituição Financeira Credenciada, para liquidação integral de dívidas de produtores rurais ou suas cooperativas de produção, originárias de uma ou mais operações da mesma Beneficiária Final, por meio de composição de dívidas.” (gn)

A expressão a critério é que tem gerado a controvérsia.
Tomando por base a Lei 9138/95, diploma legal que ficou conhecido como Lei da Securitização e que à época criou Programa parecido de regularização de dívidas rurais, traz em seu artigo 5º que as instituições financeiras e os agentes financeiros integrantes do Sistema Nacional de Crédito Rural, ficavam autorizadas a fazer o alongamento das dívidas originárias de crédito rural, nos termos da disciplina ali imposta.
Assim prescreve o indigitado dispositivo legal, in verbis:
Art. 5º São as instituições e os agentes financeiros do Sistema Nacional de Crédito Rural, instituído pela Lei nº 4.829, de 5 de novembro de 1965, autorizados a proceder ao alongamento de dívidas originárias de crédito rural, contraídas por produtores rurais, suas associações, cooperativas e condomínios, inclusive as já renegociadas, relativas às seguintes operações, realizadas até 20 de junho de 1995”. 
Como a Lei dizia que as instituições financeiras estavam autorizadas a realizar tais negociações, a grande maioria dos credores passou a fazer uma interpretação da norma no sentido de ser somente uma faculdade e não um dever-agir, o que ocasionou a resistência na firmação dos negócios, obrigando o interessado a buscar proteção judicial.
Em face do número expressivo de demandas neste sentido, o Superior Tribunal de Justiça acabou editando a Súmula 298, através da qual a interpretação do art. 5º, da Lei 9138/95 deveria ser feita no sentido de ser um direito do produtor rural e, então, um dever da instituição financeira, proceder o alongamento da dívida que preenchesse seus requisitos subjetivos e objetivos.

Diz a Súmula 298:
“O alongamento de dívida originada de crédito rural não constitui faculdade da instituição financeira, mas, direito do devedor nos termos da lei.”

O RECURSO ESPECIAL N. 166.592-MG (98.0016498-7), da relatoria do Ministro Sálvio de Figueiredo, que integra os fundamentos da mencionada Súmula, faz citação ao que já havíamos escrito sobre o tema:
“Também não discorda dessa posição Lutero de Paiva Pereira, ao assinalar: Ora, à luz do que foi tratado em momento próprio, os agentes financeiros não têm liberdade absoluta para transacionar as operações de crédito rural, já que todas as questões vinculadas a esta linha de crédito passam pelo crivo do Conselho Monetário Nacional. Noutras palavras, somente aquilo que o Conselho autoriza é que pode ser realizado pelo financiador. No caso em destaque, a própria Lei cuidou em autorizar o financiador a promover a securitização dessas dívidas, já que sem esta permissão o credor nada poderia fazer em proveito do devedor rural. Assim, se a autorização veio é porque ela deve ser levada adiante, buscando-se o interesse daquele que efetivamente necessita da medida que, no caso, sem sombra de dúvida, é o produtor rural. Não se pode conceber a ideia, ao menos no âmbito da sanidade, que a Lei em referência tivesse por meta resolver o problema do credor, dando-lhe então o direito de escolher este e reprovar aquele devedor que lhe pleiteasse a composição do seu débito. Aliás, tomando-se por base as funções social e privada do crédito rural, tratadas no capítulo 1.1 e 1.2 supra e os preceitos da Lei n. 9.138/1995, a única razão a retirar do produtor rural o direito à securitização de sua dívida está restrita ao fato de ele ter promovido o desvio da finalidade do crédito ou, então, haver agido dolosamente na condução do empreendimento. Exceção feita a estas irregularidades, o pleito do produtor ao benefício legal não pode ser negado pelo credor (PEREIRA, Lutero de Paiva. Securitização e Crédito Rural. Curitiba: Juruá, 1997, n. 5.1, p. 77).”
Mudando o que deve ser mudado a Circular BNDES 46/2018, ao comunicar as Instituições Financeiras Credenciadas sobre a criação do Programa BNDES para Composição de Dívidas Rurais – BNDES PRO-CDD AGRO, estabelecendo as condições do negócio, a despeito de ter disposto que a concessão de crédito dar-se-á a critério da Instituição Financeira Credenciada (item 1), não significa que ao financiador está facultado negar o financiamento a quem preencher os requisitos da norma.
Contrariamente a isto, a melhor exegese do texto implica em reconhecer o direito reservado ao produtor rural pessoa física ou jurídica, bem assim sua cooperativa de produção, de compor seu endividamento nos termos propostos pela Circular, até mesmo por que os recursos que serão empregados na negociação não são da Instituição, mas sim do próprio BNDES.
Ademais, se a Circular estabeleceu condições a serem satisfeitas pelo beneficiário e estas são preenchidas, o acolhimento do pedido se impõe.
Também é preciso considerar que a proposta do Programa é trazer solução ao endividamento de um setor econômico de grande importância para o País, reconhecido pela própria Lei Agrícola – Lei 8171/91 – como imprescindível à manutenção da ordem pública e da paz social (art. 2º, inciso IV), o que torna a assistência creditícia em questão um instrumento de proteção ao interesse social, a saber, a produção de alimentos.

De outra parte, não seria despiciendo agregar ao entendimento da proteção de que é merecedora a atividade produtiva primária, o fato de a Constituição Federal dispor estar na esfera de competência do Estado a organização do abastecimento alimentar (art. 23, inciso VIII), abastecimento que somente é possível de ser assegurado quando o setor primário se mostra produtivo. Sem sombra de dúvida, um produtor rural endividado, cujo passivo muitas vezes o leva às barras da Justiça, bem assim aos famigerados e odiosos cadastros de restrição de crédito, se torna inoperante para oferecer ao Estado produto rural que facilite organizar o abastecimento alimentar.
Por estas e outras razões, tendo por base o que já foi objeto de discussão ao tempo da Lei 9138/95, originadora da Súmula 298/STJ, a Circular BNDES 46/2018 deve ser lida e interpretada como um direito do produtor rural e de suas cooperativas de produção.
Assim, caso os beneficiários do Programa tenham negado pelas Instituições Financeiras Credenciadas o deferimento do pleito de composição de dívida, a alternativa de irem ao Poder Judiciário sob o balizamento da Súmula destacada, salvo melhor juízo, se mostra razoavelmente bem fundamentada.

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