Uma seca há 110 anos
Ismael Benévolo Xavier, seridoense de
Caicó, me chega à redação trazendo uma preciosidade. Cópia de uma carta
de um leitor caicoense, datada de 29 de março de 1904, publicada no
jornal A República, edição do dia 11 de abril do mesmo ano. O missivista
não se assina, mas no seu texto ficou claro que substituiu muito bem o
correspondente do jornal em Caicó, capitão mor Ismael Baptista Xavier,
que vem a ser o avô de Ismael Benévolo.
A carta conta todo o horror de uma
seca braba que abalou o sertão seridoense, mesmo sendo num ano terminado
em 4 que, segundo a tradição popular, sempre é ano bom de inverno, como
se espera que aconteça – e tudo indica que sim – neste 2014. O
missivista, que se revela bom repórter, inclui no seu texto os grandes
problemas estruturais do Seridó como a necessidade da região ser ligada à
capital por uma estrada de ferro. E os governos de então (Alberto Maranhão era o governador do Estado), como os de hoje, não cumpriam com as promessas. Vejamos a carta (respeitando a ortografia original) que foi publicada na secção Municípios (Caicó) de “A República”:
A CARTA
“Senrs. Redactores d’ “A República.”
Há
muito tempo não tem partido d’esta localidade para as conceituadas
colunas d’A República”, uma notícia siquer sobre o estado desesperador,
em que se acha este município; e isto se explica pelo facto de guardar o
leito o noticiarista d’esta terra, o nosso velho amigo capm. Ismael
Baptista Xavier.
Vamos agora, rompendo este silêncio, dar
notícias, as mais tristes e desoladoras, do nosso querido município,
digno de melhor sorte; Estamos em fins de Março e até esta data, não se
pronunciou o inverno, o que quer dizer, que estamos em plena secca!
As chuvas que cahiram n’neste município e seus arredores, foram de efeito nullo, nada produziram, nenhum recurso fizeram!
Na
feira de 20 deste, os gêneros escasseiaram, e os que appareceram foram
vendidos por preços exorbitantes, a saber: a farinha vendeu-se por 400
rs., o litro, o milho de 440 rs., o feijão por 800 rs., arroz, não
houve. O clamor é geral! A cidade acha-se invadida por um numero
elevadíssimo de imigrantes, deste e dos municípios circunvizinhos do
Catolé do Rocha, Brejo do Cruz, Rio do Peixe, Pombal e até do Piancó,
tudo do Estado da Parahyba, que tem chegado a esta cidade em procura de
recursos. Da serra do Martins e Luiz Gomes também chegam imigrantes
diariamente.
Os nossos recursos estão esgotados. Não há dia em
que a cidade não seja invadida por uma leva de retirantes, que,
esquálidos e andrajosos, imploram a caridade pública, e para não
morrerem de fome, recorrem às raízes sylvestres, quando não encontram
cachorro, gato e até couros de rezes mortas, para devorarem. Aqui, mesmo
as pessoas de recursos, estão passando privações.
Si o nosso
governo não for atendido em suas reclamações perante o governo federal,
que nos auxilie para mitigarmos a fome de nossos patrícios, terá de
desaparecer do mapa do Rio Grande do Norte, o populoso e laborioso
município do Caicó.
Agora, que acaba de chegar a essa capital,
uma comissão de engenheiros, para tratar da Estrado de ferro de Natal ao
Ceará-Mirim, e d’outras medidas para attenuar os effeitos da secca, é
preciso que o governo da União, se compenetrando d’isso, mande já e já,
sem demora, um ou dois engenheiros d’esses, para o nosso sertão,
acompanhando-os logo de recursos necessários, para conjurar a crise,
estudar a planta da estrada em demanda de nossa zona, ou o serviço de
açudagem, enquanto temos gente viva.
A estrada de ferro
exclusivamente do Ceará-Mirim, para attenuar os effeitos da seca, não
nos aproveita, no sentido de melhorar as nossas condições, afflictivas. O
nosso povo, já exangue e em verdadeiro estado de inanição, não procura o
agreste, onde os espera por certo a morte.
O recurso do sertão é
a indústria pastoril e agrícola. Este anno aqui ninguém quer um
garrote, dos poucos que restam, actualmente, nem de graça.
Da
agricultura nada temos de esperar. O rio Seridó deu uma enxurrada e as
vazantes nada produziram. Nas roças, nem sequer houve maxixes. Aqui não
há mais uma vacca de leite, as criancinhas, dos que têm algum recurso,
ainda estão se mantendo com a garapa de rapadura.
Contamos somente com o patriotismo dos que nos governam, como única esperança.
Tem
havido aqui já diversos óbitos ocasionados pela fome! Agora mesmo o
campanário da matriz dá signal de que um anjo voou para a mansão
celestial, em consequência da fome!
O pae da creança veio a
cidade pedir uma mortalha e declarou que, além deste filho, ficaram
outros a morrer! Oh! meu Deus, não sei como descrever tamanhas scenas de
miséria!
Aqui n’esta cidade, o povo só fala em retirar-se, si o
governo não nos auxiliar, porque as pessoas, que ainda vão comendo,
porém, já passando mal, e d’ando ainda alguma esmola, do pouco que lhes
resta, vêem-se já em circunstâncias tão críticas a emigrar e talvez até a
pé, a falta de cavalgadura.
Não se pode descrever as scenas, comovedoras, que presenciamos aqui diariamente.
O
nosso município é populoso, tem uma população superior a quase mil
almas, este povo todo sem recursos, condenado a morrer pela fome, é uma
verdadeira calamidade! Dos municípios visinhos, como Serra Negra, por
exemplo, nos chegam as notícias mais trágicas que se pode imaginar.
O
governo da União deve cumprir a promessa garantida pela Constituição,
mandando socorrer-nos, porque nenhuma calamidade pública equala-se a uma
secca!
Aqui termino para não perder o correio.
Caicó, 29 de Março de 1904.
Um caicoense.”
Tribuna do Norte
Nota do Blog:
Esta carta é um documento que comprova a falta de compromisso dos governos com o nordestino, a bastante tempo. Outra coisa, o ano terminado em 04(quatro) não comprova cientificamente que o ano será bom de inverno. É pura coincidência.
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