Merenda escolar: uma revolução para os agricultores familiares
O PNAE possibilita que milhares de estudantes da rede pública tenha acesso a alimentação de qualidade | Foto: Ana Lira
O
Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) é uma das iniciativas
do Governo Federal mais bem vistas pelos agricultores e agricultoras
familiares do país. Vários estudos apontam para diversos avanços no meio
rural em função desta iniciativa, mas nem por isso os atores sociais
envolvidos deixam de apresentar críticas visando seu aprimoramento. A
principal preocupação atual é o risco de retrocessos com a entrada de
Michel Temer (PMDB) na presidência e suas ações em curso. A extinção do
Ministério do Desenvolvimento Agrário, a nomeação dos novos ministros da
Educação e da Agricultura, este um expoente do agronegócio no Brasil, o
ex-senador Blairo Maggi também conhecido como Rei da Soja, e diversos
cortes e flexibilizações trabalhistas, são sinais nesse sentido.
Com o PNAE todos os alunos da educação básica matriculados em escolas públicas, filantrópicas e em entidades comunitárias conveniadas, são atendidos com recursos financeiros da União por meio do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). O Programa foi implantado em 1955 com objetivo de contribuir para o desenvolvimento da aprendizagem e melhoramento do rendimento escolar dos alunos, assim como a formação de hábitos alimentares saudáveis. A partir de 2009, com a Lei nº 11.947, 30% do valor foram direcionados à compra direta de produtos da agricultura familiar. Os valores repassados a cada dia por aluno variam de R$ 0,30 do ensino fundamental, médio, jovens e adultos, a R$ 1,00 para creches e ensino integral. A sociedade acompanha e fiscaliza por meio de Conselhos, do Tribunal de Contas e do Ministério Público, dentre outras instituições.
Em 2015 o FNDE repassou R$ 3,5 bilhões para beneficiar 42,6 milhões de estudantes da educação básica, jovens e adultos. Ou seja, R$ 1,14 bilhão deve ser investido na compra direta de produtos da agricultura familiar – um avanço notável comparando-se com valores de 1955, ano de sua criação quando foram atendidos 137 municípios e fornecidas refeições somente a 85 mil crianças. Com a nova lei, conquista dos movimentos e agricultores, sobretudo por meio do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), foi possível aumentar os recursos destinados à agricultura familiar (de R$ 9.000,00 para R$ 20.000,00 ao ano, por agricultor), dentre outros avanços no novo marco institucional. O FNDE informou, por meio da sua assessoria, que não houve mudanças nos normativos que regem o PNAE desde 2015.
Se antes as crianças se alimentavam com enlatados cheios de conservantes e comidas processadas, sobretudo por causa do poder das grandes indústrias de alimentos, que sempre dominaram o setor com produtos altamente calóricos e muito menos nutritivos, hoje é possível ver no prato delas frutas, hortaliças, verduras, dentre outros produtos saudáveis, inclusive regionais, que se perderam nos hábitos locais. Merendeiras são estimuladas a aproveitar melhor os alimentos, graças à capacitação promovida por organizações locais, e o meio ambiente é conservado de forma mais sustentável.
Segurança Alimentar
De acordo com Maria Emília Pacheco, presidenta do Consea, a proposta do PNAE está ancorada na visão de direitos ao relacionar saúde, alimentação, direito dos agricultores e ecologia, incorporando questões estruturais e culturais do sistema alimentar. “Em 2013, 84% dos municípios compraram diretamente da agricultura familiar e de suas organizações, e 56% atenderam o percentual de compra mínima de 30%. Cerca de 28% compraram menos do que 30% e 16% dos municípios ainda não compraram da agricultura familiar. Essa informação mostra-nos um processo evolutivo da democratização do acesso ao mercado institucional”, afirmou Pacheco.
De acordo com o estudo realizado em 2010 pelo FNDE em parceria com o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), as regiões sul e sudeste lideram o ranking de compra da agricultura familiar. No sul, mais de 50% dos municípios compram, enquanto no norte apenas 15%. Os principais desafios são a falta de DAP¹ das organizações (557), dificuldade de logística (1.094), falta de informação (701), etc. As hortaliças, legumes e verduras, seguidas das frutas, lideram as compras.
“As vendas de produtos agroecológicos ou orgânicos oriundos da agricultura familiar deveriam ser livres da exigência da garantia da conformidade orgânica através da certificação por auditoria ou dos Sistemas Participativos de Garantia. É necessário também garantir um diferencial de transferência de recursos do FNDE para que as prefeituras exerçam a prioridade da compra desses produtos”, ressaltou Pacheco.
Para ela, a capilaridade das escolas mostra o enorme potencial do PNAE para disseminar na sociedade os princípios da promoção da alimentação adequada e saudável, e nos convoca a continuar enfrentando os enormes desafios para a sua universalização. “Práticas de manejo são estimuladas, resgatam-se conhecimentos tradicionais e práticas alimentares, e ainda retiram-se da invisibilidade os sujeitos com suas identidades, responsáveis pela conservação da biodiversidade”, concluiu.
A última Pesquisa de Orçamentos Familiares realizada pelo IBGE (POF 2008-2009), com dados sobre consumo individual, mostra que apenas 10 frutas correspondem a 91% do total das frutas consumidas pela população. Portanto, o PNAE também contribui para a diversificação da produção com alimentos típicos regionais e, consequentemente, para a soberania alimentar e preservação dos biomas.
Agricultura familiar e alimentação saudável
Maria Leia Borges dos Reis, de 47 anos, da comunidade Buritizal dos Reis, município de Morros, no Maranhão, trabalha desde jovem com um sistema agroflorestal no seu quintal. Tem várias plantas típicas, como açu, juçara, sapucaia, bacuri, coco babaçu, dentre outras. No PNAE trabalha especificamente com plantas medicinais e hortaliças, mas produz também defensivos naturais, cria galinhas e tem de tudo um pouco.
“Tenho muito prazer na agricultura familiar, me traz mais saúde e inspiração. Esse incentivo é uma honra, uma causa muito forte com muitos desafios, mas dali tiramos nosso sustento. O PNAE influenciou na produção e renda da família, porque antes só plantávamos para o consumo. Conseguimos até comprar um veículo para levar os produtos que antes estragavam pela distância”, disse.
Segundo a agricultora, os alunos recebem muito bem a merenda porque já sabem que é de qualidade e não tem veneno, e as merendeiras já adquiriram a mesma consciência. “No começo o poder público dificultou muito sem dar prioridade aos pequenos produtores. Se não tivéssemos acompanhamento dos técnicos da ONG Tijupá não teríamos conseguido. Fizemos uma feira na praça São Bernardo para provar, já que não quiseram ir a zona rural ver a produção. Com o PNAE garantimos nossa renda e alimentação de qualidade para nós e aos alunos, com alimentos livre de agrotóxicos e mais saborosos. Mas falta organização do poder público, que muitas vezes atrasa o pagamento”, criticou.
Região Sul como referência
Algumas organizações e movimentos da agricultura familiar na região sul conquistaram espaços importantes no mercado de alimentos agroecológicos e orgânicos. É o caso da Rede Ecovida de Agroecologia, que desde 1998 conecta produtores, técnicos e consumidores no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Organizada em 28 núcleos, articula cerca de 4,5 mil famílias na região e promove mais de 200 feiras ecológicas. Atua em diversos campos da promoção da alimentação saudável, inclusive na merenda escolar.
Quase 2.800 famílias da Rede são cadastradas no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e entregam comida agroecológica e orgânica ao PNAE, observou José Antônio Marfil, da Associação para o Desenvolvimento da Agroecologia (AOPA), do Paraná. Segundo ele, o debate no âmbito escolar sobre a alimentação causou também um questionamento sobre a qualidade da comida. Merendeiras, agricultoras, cozinheiras, nutricionistas, diretoras e secretárias discutindo o tema foi um grande avanço nesse sentido. E com a Lei os agricultores e suas organizações passaram a cobrar dos governos o direito de vender seus alimentos nas chamadas públicas.
“Aquela conversa de que a agricultura familiar, em especial agroecológica e orgânica, nunca iria conseguir por comida no prato ou nas escolas é mentira. Tanto é que a AOPA fechou em 2010 um contrato de R$ 69 mil para o PNAE, e em 2015 outro de R$ 4,6 milhões. Pulamos da entrega semanal com média de 500 kg de produto para 25 toneladas produzidas por agricultores agroecológicos. A Lei colocou o agricultor familiar como grande fornecedor do produto limpo e mostrou que é possível”, afirmou.
Nesse processo as entregas da AOPA ao PNAE só aumentaram: passaram de 60 agricultores para 1.500. A diversificação da produção acompanhou esse ritmo: de 35 produtos pulou para 95 itens. As cozinhas para a preparação do alimento saudável, por sua vez, saltaram de 5 para 25, a maioria delas coordenadas por jovens e mulheres. São muitos reflexos dessas iniciativas nos territórios: geração de renda, aumento da autoestima, valorização dos jovens e mulheres, diminuição do êxodo rural, etc.
“O PNAE trouxe uma perspectiva de vida, o jovem hoje pode pensar em casar porque antes não tinha renda. Trabalhar, produzir, vender na alimentação escolar, e criaram-se outros canais de comercialização. É um grande avanço para toda a população, tanto para agricultores como para os consumidores, que são as crianças. É uma revolução que está servindo de exemplo para vários países. Uma lei que funciona e temos que manter, apesar de ter muita gente querendo derrubar”, defendeu.
Juventude e Agroindústria
A realidade da agricultora Amanda Beng Marfil, de 27 anos, moradora de Bocaiúva do Sul, no Paraná, é igual à de muitas que entregam alimentos ao PNAE. Relata que enfrentou muitas barreiras, sobretudo para acessar a Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP). Mas desde 2010 trabalha numa agroindústria produzindo pães, tortas, cucas, bolachas, doces de frutas e molho de tomate. Hoje vende em feiras, eventos dentro e fora de sua propriedade e entrega em pequenas lojas e restaurantes, além de acessar outras políticas.
“Só assim consegui continuar trabalhando com agroecologia, e tendo uma renda exclusivamente do campo. É uma realidade de várias outras agroindústrias da região, então foi um grande passo na autonomia dessas pessoas. E fazendo parte desses programas fica mais fácil o acesso aos financiamentos através do Pronaf, então é uma forma também de ter condições de investir na propriedade, empreender, crescer, se profissionalizar, porque haverá esse retorno”, afirmou.
Mas o teto estabelecido na Lei é questionado por muitos agricultores, porque se para um camponês ganhar R$ 20 mil ao ano em alfaces é vantajoso, por exemplo, aos que trabalham com produtos processados, cujo custo de produção é muito maior, não é tão lucrativo. “Evoluiu muito na questão da tomada de preço, mas é sempre aquém do que comercializamos numa feira ou lojas. Oura questão é que acessamos apenas 30% da verba que vem do governo federal, e a agricultura familiar e agroecológica tem condições de produzir muito mais. Temos de entender que as nossas crianças precisam comer alimentos cada vez melhores”, destacou.
Uma dificuldade que vem sendo superada na região sul mas ainda é problemática noutras regiões, é a adequação dos cardápios às realidades locais. Muitas vezes os alimentos listados pelas nutricionistas não estão na localidade, então a Rede Ecovida vem promovendo cursos de capacitação para estreitar esses laços e melhorar a qualidade dos alimentos. “No início era um cardápio muito fixo e não se entendia sazonalidade nem tinha muitos alimentos regionais. Mas hoje alinhamos um cardápio de acordo com as plantações e resgatamos alimentos que não eram mais utilizados no dia a dia das pessoas. Em relação à logística de entrega, se a gente está organizado, faz parte de uma cooperativa ou associação, fica mais fácil crescer. É muito difícil fazer a entrega nos espaços de comercialização de alimentos, então quando centralizamos esse processo se viabiliza ”, observou.
Dentro da Rede são estabelecidas muitas parcerias entre os agricultores e organizações para reduzir o custo de produção, já que legalizar e manter uma agroindústria é muito caro, e se alinhar às rigorosas leis vigentes também não é simples. A inadequação das atuais normas sanitárias ao modo de produção de base artesanal e familiar é uma das principais barreiras ao acesso da agricultura familiar ao PNAE, chegando a impedir que ovos, galinha caipira, derivados de leite, polpas de frutas e pescado, por exemplo, sejam incluídos nesses mercados. Por isso boa parte do tomate para fazer o molho da jovem agricultora é fornecida por um parceiro, que pega parte desse produto final para revender. “Conseguimos construir várias parcerias entre as agroindústrias e os agricultores que plantam as verduras, assim é uma forma de você agregar valor ao produto, não perder o excedente e diversificar a sua lista de produtos para venda”, disse.
Críticas dos assessores técnicos
Conversando com profissionais que desenvolvem esses projetos nos territórios, percebemos são vistas muitas dificuldades em comum. Dentre elas, a burocracia e a dependência dos agricultores familiares a determinados atores do poder público local. Se o prefeito ou os diretores do colégio não se identificam com a política, por exemplo, vários entraves são estabelecidos na relação com o agricultor e no repasse dos 30% das verbas. A logística de entrega, o preço dos alimentos e o teto anual são outros pontos questionados.
“Amplo setor jurídico dos municípios e estados não compreende que o preço não é um pregão. A burocracia e o entendimento do poder jurídico de como fazer uma chamada é um problema, assim como dificuldades em relação a secretarias ou nutricionistas em entender que é importante colocar no cardápio produtos da sua região e não de outro estado”, destacou Marfil.
Muitos governos estaduais e municipais não investem recursos para aumentar o montante repassado pela União, o que na visão dos técnicos acaba ficando insuficiente para atender às necessidades dos agricultores. O valor per capita estabelecido diariamente para cada aluno é muito pouco, criticam, e por isso muitas vezes os agentes políticos responsáveis acabam optando pelo produto convencional e não orgânico. “Abastecemos vinte escolas por semana, é um trabalho grande mas aprendemos a fazer. E outra questão é a assistência técnica (Ater) e pesquisa, infelizmente na área da produção agroecológica praticamente não existe. Começamos a discutir a necessidade de programas que fazem isso, já temos programas a nível nacional de Ater e pesquisa. Estão ocorrendo alguns avanços, mas temos muito a caminhar”, apontou o técnico.
A ausência de controle social é outro ponto muito importante, no sentido da falta de participação da sociedade e de informação para monitoramento das execuções. De acordo com Carlos Pereira, da ONG Tijupá, do Maranhão, poucos Conselhos de Alimentação Escolar (CAES), que são compostos por pais, professoras, merendeiras e administrações municipais, funcionam. “Estão realizando audiências para receber propostas aos editais, isso é muito bom porque conseguimos reduzir a entrada de elementos estranhos. Dá uma transparência maior e elimina fraudes. Assim pessoas que não são agricultoras mas têm DAP podem ser reveladas, e melhora o controle social. Nas audiências os agricultores participam para fazer uma amostra dos seus produtos”, afirmou.
A articulação das organizações de apoio aos agricultores com os diversos gestores também é fundamental. Sem a incidência de associações, cooperativas e ONGs, dentre outras entidades, é quase impossível acessar e gerenciar a política. “Os prefeitos e secretários muitas vezes argumentam que não tem agricultura no município. Conseguimos derrubar esse argumento colocando feiras agroecológicas. Para eles, é muito interessante ficar com esses 30% nos seus esquemas. Vimos que além da secretaria de educação, que é a executora, é preciso aproximar a secretaria de agricultura, o pessoal da saúde e as CPLs (Comissões Permanentes de Licitações), que vão elaborar os editais. O PNAE tem uma legislação à parte para agricultura familiar na licitação, e muitos gestores não entendem isso e acaba saindo do que está na norma”, concluiu.
Muitas escolas ainda não têm infraestrutura adequada para o preparo de alimentos, e estudos mostram que algumas sequer possuem água. Segundo dados do Censo Escolar 2007, das quase 200 mil escolas públicas de educação básica existentes no Brasil, 1.789 não possuem qualquer tipo de abastecimento de água. No que se refere ao saneamento básico, quase 15 mil delas não possuem infraestrutura adequada. São questões que não podem ser vistas como bloqueios para tornar o programa inoperante.
Críticas à burocracia
O principal instrumento que identifica e qualifica os agricultores familiares e também suas organizações em forma de pessoa jurídica para acessar as políticas públicas é a Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP). O acesso a esse documento é muito criticado por todos os segmentos que atuam nessa área, sobretudo os jovens e mulheres.
“Muitas vezes é a Emater que emite a DAP, e há um déficit de funcionários nesses estabelecimentos. Para fazer a minha demorei quase um ano, porque não acreditavam que eu como mulher e jovem precisava, achavam que eu podia entregar a produção junto ao meu pai. Mas eu queria a minha autonomia, o direito de como agricultora ter a minha condição de venda. Temos de ser muito persistentes para conseguir acessar essas coisas. A partir do momento que você está dentro é muito mais fácil, mas para entrar ainda é um processo muito difícil”, criticou a jovem agricultora Amanda Marfil.
De acordo com assessoria da Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário da Casa Civil da Presidência da República, a DAP pode ser emitida para pessoa física e jurídica e é feita por órgãos autorizados pela Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário (Sead), que pode ser um escritório de Ater ou os próprios sindicatos de trabalhadores rurais. O número de DAPs ativas por ano aumentou de pouco mais de um milhão para mais de cinco milhões nos últimos onze anos, informou.
“Existem mais de 28 mil agentes emissores de DAP em todo o País. Caso o sindicato ou associação mais próxima do agricultor ainda não emita o documento, o produtor familiar precisa pedir ao estabelecimento que entre em contato com o MDA. A emissão da DAP é totalmente gratuita, e tem validade de três anos. Para obtê-la, é necessário apresentar carteira de identidade e CPF – no caso de pessoas casadas, o cônjuge também deve apresentar os documentos; possuir área rural de até quadro módulos fiscais; ter como principal fonte de renda as atividades da exploração da propriedade e possuir renda bruta anual de até R$ 360 mil”, informou o órgão.
Com o PNAE todos os alunos da educação básica matriculados em escolas públicas, filantrópicas e em entidades comunitárias conveniadas, são atendidos com recursos financeiros da União por meio do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). O Programa foi implantado em 1955 com objetivo de contribuir para o desenvolvimento da aprendizagem e melhoramento do rendimento escolar dos alunos, assim como a formação de hábitos alimentares saudáveis. A partir de 2009, com a Lei nº 11.947, 30% do valor foram direcionados à compra direta de produtos da agricultura familiar. Os valores repassados a cada dia por aluno variam de R$ 0,30 do ensino fundamental, médio, jovens e adultos, a R$ 1,00 para creches e ensino integral. A sociedade acompanha e fiscaliza por meio de Conselhos, do Tribunal de Contas e do Ministério Público, dentre outras instituições.
Em 2015 o FNDE repassou R$ 3,5 bilhões para beneficiar 42,6 milhões de estudantes da educação básica, jovens e adultos. Ou seja, R$ 1,14 bilhão deve ser investido na compra direta de produtos da agricultura familiar – um avanço notável comparando-se com valores de 1955, ano de sua criação quando foram atendidos 137 municípios e fornecidas refeições somente a 85 mil crianças. Com a nova lei, conquista dos movimentos e agricultores, sobretudo por meio do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), foi possível aumentar os recursos destinados à agricultura familiar (de R$ 9.000,00 para R$ 20.000,00 ao ano, por agricultor), dentre outros avanços no novo marco institucional. O FNDE informou, por meio da sua assessoria, que não houve mudanças nos normativos que regem o PNAE desde 2015.
Se antes as crianças se alimentavam com enlatados cheios de conservantes e comidas processadas, sobretudo por causa do poder das grandes indústrias de alimentos, que sempre dominaram o setor com produtos altamente calóricos e muito menos nutritivos, hoje é possível ver no prato delas frutas, hortaliças, verduras, dentre outros produtos saudáveis, inclusive regionais, que se perderam nos hábitos locais. Merendeiras são estimuladas a aproveitar melhor os alimentos, graças à capacitação promovida por organizações locais, e o meio ambiente é conservado de forma mais sustentável.
Segurança Alimentar
De acordo com Maria Emília Pacheco, presidenta do Consea, a proposta do PNAE está ancorada na visão de direitos ao relacionar saúde, alimentação, direito dos agricultores e ecologia, incorporando questões estruturais e culturais do sistema alimentar. “Em 2013, 84% dos municípios compraram diretamente da agricultura familiar e de suas organizações, e 56% atenderam o percentual de compra mínima de 30%. Cerca de 28% compraram menos do que 30% e 16% dos municípios ainda não compraram da agricultura familiar. Essa informação mostra-nos um processo evolutivo da democratização do acesso ao mercado institucional”, afirmou Pacheco.
De acordo com o estudo realizado em 2010 pelo FNDE em parceria com o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), as regiões sul e sudeste lideram o ranking de compra da agricultura familiar. No sul, mais de 50% dos municípios compram, enquanto no norte apenas 15%. Os principais desafios são a falta de DAP¹ das organizações (557), dificuldade de logística (1.094), falta de informação (701), etc. As hortaliças, legumes e verduras, seguidas das frutas, lideram as compras.
“As vendas de produtos agroecológicos ou orgânicos oriundos da agricultura familiar deveriam ser livres da exigência da garantia da conformidade orgânica através da certificação por auditoria ou dos Sistemas Participativos de Garantia. É necessário também garantir um diferencial de transferência de recursos do FNDE para que as prefeituras exerçam a prioridade da compra desses produtos”, ressaltou Pacheco.
Para ela, a capilaridade das escolas mostra o enorme potencial do PNAE para disseminar na sociedade os princípios da promoção da alimentação adequada e saudável, e nos convoca a continuar enfrentando os enormes desafios para a sua universalização. “Práticas de manejo são estimuladas, resgatam-se conhecimentos tradicionais e práticas alimentares, e ainda retiram-se da invisibilidade os sujeitos com suas identidades, responsáveis pela conservação da biodiversidade”, concluiu.
A última Pesquisa de Orçamentos Familiares realizada pelo IBGE (POF 2008-2009), com dados sobre consumo individual, mostra que apenas 10 frutas correspondem a 91% do total das frutas consumidas pela população. Portanto, o PNAE também contribui para a diversificação da produção com alimentos típicos regionais e, consequentemente, para a soberania alimentar e preservação dos biomas.
Agricultura familiar e alimentação saudável
Maria Leia Borges dos Reis, de 47 anos, da comunidade Buritizal dos Reis, município de Morros, no Maranhão, trabalha desde jovem com um sistema agroflorestal no seu quintal. Tem várias plantas típicas, como açu, juçara, sapucaia, bacuri, coco babaçu, dentre outras. No PNAE trabalha especificamente com plantas medicinais e hortaliças, mas produz também defensivos naturais, cria galinhas e tem de tudo um pouco.
“Tenho muito prazer na agricultura familiar, me traz mais saúde e inspiração. Esse incentivo é uma honra, uma causa muito forte com muitos desafios, mas dali tiramos nosso sustento. O PNAE influenciou na produção e renda da família, porque antes só plantávamos para o consumo. Conseguimos até comprar um veículo para levar os produtos que antes estragavam pela distância”, disse.
Segundo a agricultora, os alunos recebem muito bem a merenda porque já sabem que é de qualidade e não tem veneno, e as merendeiras já adquiriram a mesma consciência. “No começo o poder público dificultou muito sem dar prioridade aos pequenos produtores. Se não tivéssemos acompanhamento dos técnicos da ONG Tijupá não teríamos conseguido. Fizemos uma feira na praça São Bernardo para provar, já que não quiseram ir a zona rural ver a produção. Com o PNAE garantimos nossa renda e alimentação de qualidade para nós e aos alunos, com alimentos livre de agrotóxicos e mais saborosos. Mas falta organização do poder público, que muitas vezes atrasa o pagamento”, criticou.
Região Sul como referência
Algumas organizações e movimentos da agricultura familiar na região sul conquistaram espaços importantes no mercado de alimentos agroecológicos e orgânicos. É o caso da Rede Ecovida de Agroecologia, que desde 1998 conecta produtores, técnicos e consumidores no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Organizada em 28 núcleos, articula cerca de 4,5 mil famílias na região e promove mais de 200 feiras ecológicas. Atua em diversos campos da promoção da alimentação saudável, inclusive na merenda escolar.
Quase 2.800 famílias da Rede são cadastradas no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e entregam comida agroecológica e orgânica ao PNAE, observou José Antônio Marfil, da Associação para o Desenvolvimento da Agroecologia (AOPA), do Paraná. Segundo ele, o debate no âmbito escolar sobre a alimentação causou também um questionamento sobre a qualidade da comida. Merendeiras, agricultoras, cozinheiras, nutricionistas, diretoras e secretárias discutindo o tema foi um grande avanço nesse sentido. E com a Lei os agricultores e suas organizações passaram a cobrar dos governos o direito de vender seus alimentos nas chamadas públicas.
“Aquela conversa de que a agricultura familiar, em especial agroecológica e orgânica, nunca iria conseguir por comida no prato ou nas escolas é mentira. Tanto é que a AOPA fechou em 2010 um contrato de R$ 69 mil para o PNAE, e em 2015 outro de R$ 4,6 milhões. Pulamos da entrega semanal com média de 500 kg de produto para 25 toneladas produzidas por agricultores agroecológicos. A Lei colocou o agricultor familiar como grande fornecedor do produto limpo e mostrou que é possível”, afirmou.
Nesse processo as entregas da AOPA ao PNAE só aumentaram: passaram de 60 agricultores para 1.500. A diversificação da produção acompanhou esse ritmo: de 35 produtos pulou para 95 itens. As cozinhas para a preparação do alimento saudável, por sua vez, saltaram de 5 para 25, a maioria delas coordenadas por jovens e mulheres. São muitos reflexos dessas iniciativas nos territórios: geração de renda, aumento da autoestima, valorização dos jovens e mulheres, diminuição do êxodo rural, etc.
“O PNAE trouxe uma perspectiva de vida, o jovem hoje pode pensar em casar porque antes não tinha renda. Trabalhar, produzir, vender na alimentação escolar, e criaram-se outros canais de comercialização. É um grande avanço para toda a população, tanto para agricultores como para os consumidores, que são as crianças. É uma revolução que está servindo de exemplo para vários países. Uma lei que funciona e temos que manter, apesar de ter muita gente querendo derrubar”, defendeu.
Juventude e Agroindústria
A realidade da agricultora Amanda Beng Marfil, de 27 anos, moradora de Bocaiúva do Sul, no Paraná, é igual à de muitas que entregam alimentos ao PNAE. Relata que enfrentou muitas barreiras, sobretudo para acessar a Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP). Mas desde 2010 trabalha numa agroindústria produzindo pães, tortas, cucas, bolachas, doces de frutas e molho de tomate. Hoje vende em feiras, eventos dentro e fora de sua propriedade e entrega em pequenas lojas e restaurantes, além de acessar outras políticas.
“Só assim consegui continuar trabalhando com agroecologia, e tendo uma renda exclusivamente do campo. É uma realidade de várias outras agroindústrias da região, então foi um grande passo na autonomia dessas pessoas. E fazendo parte desses programas fica mais fácil o acesso aos financiamentos através do Pronaf, então é uma forma também de ter condições de investir na propriedade, empreender, crescer, se profissionalizar, porque haverá esse retorno”, afirmou.
Mas o teto estabelecido na Lei é questionado por muitos agricultores, porque se para um camponês ganhar R$ 20 mil ao ano em alfaces é vantajoso, por exemplo, aos que trabalham com produtos processados, cujo custo de produção é muito maior, não é tão lucrativo. “Evoluiu muito na questão da tomada de preço, mas é sempre aquém do que comercializamos numa feira ou lojas. Oura questão é que acessamos apenas 30% da verba que vem do governo federal, e a agricultura familiar e agroecológica tem condições de produzir muito mais. Temos de entender que as nossas crianças precisam comer alimentos cada vez melhores”, destacou.
Uma dificuldade que vem sendo superada na região sul mas ainda é problemática noutras regiões, é a adequação dos cardápios às realidades locais. Muitas vezes os alimentos listados pelas nutricionistas não estão na localidade, então a Rede Ecovida vem promovendo cursos de capacitação para estreitar esses laços e melhorar a qualidade dos alimentos. “No início era um cardápio muito fixo e não se entendia sazonalidade nem tinha muitos alimentos regionais. Mas hoje alinhamos um cardápio de acordo com as plantações e resgatamos alimentos que não eram mais utilizados no dia a dia das pessoas. Em relação à logística de entrega, se a gente está organizado, faz parte de uma cooperativa ou associação, fica mais fácil crescer. É muito difícil fazer a entrega nos espaços de comercialização de alimentos, então quando centralizamos esse processo se viabiliza ”, observou.
Dentro da Rede são estabelecidas muitas parcerias entre os agricultores e organizações para reduzir o custo de produção, já que legalizar e manter uma agroindústria é muito caro, e se alinhar às rigorosas leis vigentes também não é simples. A inadequação das atuais normas sanitárias ao modo de produção de base artesanal e familiar é uma das principais barreiras ao acesso da agricultura familiar ao PNAE, chegando a impedir que ovos, galinha caipira, derivados de leite, polpas de frutas e pescado, por exemplo, sejam incluídos nesses mercados. Por isso boa parte do tomate para fazer o molho da jovem agricultora é fornecida por um parceiro, que pega parte desse produto final para revender. “Conseguimos construir várias parcerias entre as agroindústrias e os agricultores que plantam as verduras, assim é uma forma de você agregar valor ao produto, não perder o excedente e diversificar a sua lista de produtos para venda”, disse.
Críticas dos assessores técnicos
Conversando com profissionais que desenvolvem esses projetos nos territórios, percebemos são vistas muitas dificuldades em comum. Dentre elas, a burocracia e a dependência dos agricultores familiares a determinados atores do poder público local. Se o prefeito ou os diretores do colégio não se identificam com a política, por exemplo, vários entraves são estabelecidos na relação com o agricultor e no repasse dos 30% das verbas. A logística de entrega, o preço dos alimentos e o teto anual são outros pontos questionados.
“Amplo setor jurídico dos municípios e estados não compreende que o preço não é um pregão. A burocracia e o entendimento do poder jurídico de como fazer uma chamada é um problema, assim como dificuldades em relação a secretarias ou nutricionistas em entender que é importante colocar no cardápio produtos da sua região e não de outro estado”, destacou Marfil.
Muitos governos estaduais e municipais não investem recursos para aumentar o montante repassado pela União, o que na visão dos técnicos acaba ficando insuficiente para atender às necessidades dos agricultores. O valor per capita estabelecido diariamente para cada aluno é muito pouco, criticam, e por isso muitas vezes os agentes políticos responsáveis acabam optando pelo produto convencional e não orgânico. “Abastecemos vinte escolas por semana, é um trabalho grande mas aprendemos a fazer. E outra questão é a assistência técnica (Ater) e pesquisa, infelizmente na área da produção agroecológica praticamente não existe. Começamos a discutir a necessidade de programas que fazem isso, já temos programas a nível nacional de Ater e pesquisa. Estão ocorrendo alguns avanços, mas temos muito a caminhar”, apontou o técnico.
A ausência de controle social é outro ponto muito importante, no sentido da falta de participação da sociedade e de informação para monitoramento das execuções. De acordo com Carlos Pereira, da ONG Tijupá, do Maranhão, poucos Conselhos de Alimentação Escolar (CAES), que são compostos por pais, professoras, merendeiras e administrações municipais, funcionam. “Estão realizando audiências para receber propostas aos editais, isso é muito bom porque conseguimos reduzir a entrada de elementos estranhos. Dá uma transparência maior e elimina fraudes. Assim pessoas que não são agricultoras mas têm DAP podem ser reveladas, e melhora o controle social. Nas audiências os agricultores participam para fazer uma amostra dos seus produtos”, afirmou.
A articulação das organizações de apoio aos agricultores com os diversos gestores também é fundamental. Sem a incidência de associações, cooperativas e ONGs, dentre outras entidades, é quase impossível acessar e gerenciar a política. “Os prefeitos e secretários muitas vezes argumentam que não tem agricultura no município. Conseguimos derrubar esse argumento colocando feiras agroecológicas. Para eles, é muito interessante ficar com esses 30% nos seus esquemas. Vimos que além da secretaria de educação, que é a executora, é preciso aproximar a secretaria de agricultura, o pessoal da saúde e as CPLs (Comissões Permanentes de Licitações), que vão elaborar os editais. O PNAE tem uma legislação à parte para agricultura familiar na licitação, e muitos gestores não entendem isso e acaba saindo do que está na norma”, concluiu.
Muitas escolas ainda não têm infraestrutura adequada para o preparo de alimentos, e estudos mostram que algumas sequer possuem água. Segundo dados do Censo Escolar 2007, das quase 200 mil escolas públicas de educação básica existentes no Brasil, 1.789 não possuem qualquer tipo de abastecimento de água. No que se refere ao saneamento básico, quase 15 mil delas não possuem infraestrutura adequada. São questões que não podem ser vistas como bloqueios para tornar o programa inoperante.
Críticas à burocracia
O principal instrumento que identifica e qualifica os agricultores familiares e também suas organizações em forma de pessoa jurídica para acessar as políticas públicas é a Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP). O acesso a esse documento é muito criticado por todos os segmentos que atuam nessa área, sobretudo os jovens e mulheres.
“Muitas vezes é a Emater que emite a DAP, e há um déficit de funcionários nesses estabelecimentos. Para fazer a minha demorei quase um ano, porque não acreditavam que eu como mulher e jovem precisava, achavam que eu podia entregar a produção junto ao meu pai. Mas eu queria a minha autonomia, o direito de como agricultora ter a minha condição de venda. Temos de ser muito persistentes para conseguir acessar essas coisas. A partir do momento que você está dentro é muito mais fácil, mas para entrar ainda é um processo muito difícil”, criticou a jovem agricultora Amanda Marfil.
De acordo com assessoria da Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário da Casa Civil da Presidência da República, a DAP pode ser emitida para pessoa física e jurídica e é feita por órgãos autorizados pela Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário (Sead), que pode ser um escritório de Ater ou os próprios sindicatos de trabalhadores rurais. O número de DAPs ativas por ano aumentou de pouco mais de um milhão para mais de cinco milhões nos últimos onze anos, informou.
“Existem mais de 28 mil agentes emissores de DAP em todo o País. Caso o sindicato ou associação mais próxima do agricultor ainda não emita o documento, o produtor familiar precisa pedir ao estabelecimento que entre em contato com o MDA. A emissão da DAP é totalmente gratuita, e tem validade de três anos. Para obtê-la, é necessário apresentar carteira de identidade e CPF – no caso de pessoas casadas, o cônjuge também deve apresentar os documentos; possuir área rural de até quadro módulos fiscais; ter como principal fonte de renda as atividades da exploração da propriedade e possuir renda bruta anual de até R$ 360 mil”, informou o órgão.
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