Dia de Vacina
Seu
Ermínio era o veterinário da fazenda, funcionava como um relógio,
sempre na data correta, seguindo o calendário pregado na parede do
curral. Estava para lá dos 60 anos, cara de emburrado, mas era boa gente
na hora da conversa. Chegou, encostou o carro na sombra, foi logo
convidado para o café na casa-grande, como sinal de boas vindas. Nesse
dia, demorou-se pouco no café, não porque a tapioca estivesse menos
crocante, ou o mungunzá meio gelado; era pressa mesmo, pois o dia ia ser
grande!
Começou
o trabalho, no meio da cantoria dos peões que iam chegando, trazendo
lotes e mais lotes de animais. Era dia de vacinação geral: vaca, boi,
garrote, carneiro, ovelha, cabra, bode e o que mais aparecesse. Era um
dia muito alegre, mas que exigia cuidado e calma, pois havia bicho de
todo tipo na reunião.
Acontece
que Dona Zefinha, a professora da escolinha, tinha um quê-de-quê pelo
antigo veterinário e bem nesse dia resolveu se aproximar. Não tendo
assunto, inventou um: era dia da criançada ter aula-de-campo, observando
e anotando tudo sobre uma vacinação de animais. Tudo bem, a intenção
era boa, mas havia um problema: como controlar a soma de quase cinquenta
garotos e garotas arrulhentas e desembestadas? Afinal, para a molecada
era uma boa distração, um dia qualquer transformado em quase domingo.
E
o dia da vacinação transformou-se num pega-pega, tapa-tapa,
grita-grita, corre-corre, berra-berra, chia-chia, misturando-se ao
tradicional vozerio dos animais de todos os tamanhos, credos, raças e
origens.
Seguindo
a ordem militar, o bando revoluteva, sempre, por perto da professora.
Então, chegava ao curral, onde Dona Zefinha batia um papinho com Seu
Ermínio, sempre muito educado, compenetrado, em seu jaleco, montado no
brete, com ar de imperador do dia. Num trisque a turba com Dona Zefinha à
frente sumia para ver o pomar. Logo, voltava para mais um papinho e, de
novo, saía para ver a moenda de cana. Depois, voltava outro papinho e
saía para ir ver o rio onde um dia havia até jacarés e cobras grandes. E
assim foram muitas idas e vindas, aproximando o viúvo empedernido e a
solteirona muito ajeitada, no meio daquele oceano de travessuras da
criançada.
Lá
pelas onze horas, Seu Ermínio já tinha certeza absoluta de que não iria
terminar o serviço no horário e os animais já começavam a dar mostras
de preocupação diante daquela algazarra desenfreada, daquela turba
empoleirada nas varas, daquele monte de bracinhos levantando, baixando,
apontando, perturbando a milenar fleuma do campo.
- Xiii... Em vez de quatro horas, a vacinação vai durar quatro dias - reclamou o peão, como profeta bíblico.
Acontece
que meninada odeia repeteco e, a cada chegada ao curral, mostrava ares
de descontentamento, pois havia tanto a ver na fazenda e não era justo
perder tempo visitando o local onde só havia trabalho e um montão de
bichos. Criança quer novidades! Não sendo atendida, começa a fazer
desaforices, a mexer onde não deve, a se pendurar nos paus, a pular onde
não deve, a atiçar a bicharada.
Foi nesse ponto, que Seu Hermínio viu que lá vinha a professora faceira, arrastando a gurizada - de novo - rumo ao curral.
Não
eram mais alunos: aquilo era um bando de diabinhos sem cabresto e
bridão. Vendo a desaprovação dos vaqueiros, tomou uma decisão:
- Vou pegar meu canhão.
Foi
até sua maleta, com cara amarrada, pegou a única arma que poderia dar
um fim àquela confusão. Com as mãos nas costas, jaleco retinindo ao sol,
colocou na cara um sorriso de papa-defuntos e ficou na frente da
invasão. Com a mão direita erguida, segurava os peraltas até que os
últimos se chegassem. Até Dona Zefinha ganhou a dianteira, sorridente,
ao ver que o ilustre veterinário estava querendo dar uma aula para os
alunos. Era um momento mágico. Todo mundo parou, olhinhos arregalados,
fixados no doutor grandalhão que tinha a sabença do mundo no costado e
que iria ditar, finalmente, as leis do universo. E a voz trovejou:
- Surpresa!
Todos pararam para escutar.
-
Vocês, da escola, hoje estão de férias, pois é dia-santo escolar. Agora
que terminamos o serviço com os animais, já podemos fazer o serviço
combinado com a criançada da escola. Hoje é dia-santo da vacinação, aqui
na fazenda, como vocês viram. Também a criança que não recebe vacina
morre. Ouviram bem? Morre! Morre! Então, todos vocês precisam ser
vacinados. Hoje é o dia-santo da vacinação da criançada. Podem formar
uma fila e vir avançando para cá.
Foi
aí que o doutor tirou a mão esquerda das costas, segurava uma enorme
seringa de litro-e-meia, daquelas de fazer punção em barriga de cavalo
empanzinado, com uma agulha gigantesca de 30 centímetros.
- Vamos aproveitar o dia-santo e começar a vacinação das crianças. Já estamos atrasados.
E sacudia a seringa, para ficar bem clara sua intenção.
Os
olhos ficaram vidrados, silêncio absoluto, as pernas tremeram, os
braços caíram, o relógio parou, o céu desapareceu, até as vacas
aquietaram para ver o final, as cabras sorriam, os carneiros se
altearam, alguma coisa ia acontecer.
As bocas se abriram e o clamor foi geral:
- Uaaaaaau!
Foi
um grito só, um deus-nos-acuda, com menino escafedendo-se por todos os
lados, desembestados para a casa-grande, para a porteira, para o pomar,
para o mais longe possível, atropelando pato, galinha, gato, cachorro,
sabugo e quem ficasse para trás.
Foi
assim que voltou a reinar um grande e santo silêncio no curral, para
satisfação dos animais e a vacinação voltou ao ritmo na santa paz de
Deus, com Dona Zefinha, já longe, tentando juntar a molecada espavorida
para voltar para a escola.
Fonte: inspirado em um caso apresentado em "O galinhista", pág. 48, de Edson Pereira (2010).
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