quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Coisas do Sertanejo

O BODE CHEIRADOR

 

Havia um povoado entre Coxixola e Zabelê, nos antigos tempos em que lagartixa e calango saboreavam um bom papo no tronco da macambira. O velho fazendeiro, turrão como ele só, havia descoberto uma maneira para ninguém mais roubar suas galinhas, porcos, cabras e ovelhas, sem levar a justa palmatória da justiça. Ele escolheu um bodete com cara de malandro desconfiado, que vivia cheirando tudo no curral e nos arredores. O dito animal era um especialista nos cheiros das coisas que transitavam perto da casa e podia distinguir esse odor em qualquer outro lugar.
Nas empreitadas de cerca, muro, açude e poço, o velho fazendeiro levava o bodete que logo começava a cheirar as botas, sandálias ou alpercatas dos trabalhadores. Quando reconhecia um cheiro, fazia sua cabriolice natural e o fazendeiro logo dava o tom:
- Ah, ah! - o bodete está dizendo que você anda cabulando o serviço, trançando lero nos terreiros da casa-grande. É hora de se comportar, homem, e trabalhar, pois o bodete não deixa nada escapar!
Assim, a fama do animal crescia. Quando desaparecia alguma galinha, pato, ganso, marreco, cabrito ou carneiro, lá ia o fazendeiro e seu fiel bodete até a delegacia, cheirar sapatos dos presos nos últimos dias. Era tiro e queda: se o ladrão ali estivesse, o bodete fazia o trabalho da polícia, entregando o larápio, na hora!
- Ôxa! Com um bode farejador desses, quem é que precisa de cão ­policial? - comentavam no povoado.
O certo é que os surrupiadores dos bens alheios foram montar praça em outra freguesia, dando sossego no po­voado, ou - ao menos - à terra do velho fazendeiro.
Para quebrar a monotonia, Seu Totonho resolveu fazer uma vaquejada sertaneja e convidou o mundo inteiro. Chegou gente de todo canto e muitos nem cavalo tinham. Foi, então, que alguns desavisados, talvez por traquinagem, roubaram uma bonita égua do velho fazendeiro, tendo em vista desfilar na festança na conquista de alguma donzela, como se bom corredor fosse da dita vaquejada.
- Pois isso não fica assim, não! - garantiu o velho turrão. É uma desonra roubar bem uma bela égua de meu terreiro. Vamos buscar a roubada, esteja onde estiver.

 

Começou o trajeto singular, pela delegacia, outras fazendas, a animália na feira, mas nada! Enquanto isso, mais gente ia se apinhando para a vaquejada.
Então, o velho fazendeiro entrou no recinto, cheio de pompa, escopeta e punhal comprido, cartucheira cruzada no peito, chapéu de coco, levando o bodete numa corda.
- Vamos fazer uma vistoria na gente decente dessa festança. Que os justos não tenham medo, pois o meu bode não erra e vai achar o desafeto se ele aqui estiver.
Para abreviar a trabalheira, os cavaleiros fizeram fila e o bodete foi cheirando bota por bota. Havia bota bordada, bota trançada, bota pintada, bota de jacaré, bota de cobra, bota brilhosa, bota estrelada, bota cintilosa, e tantas mais.
Lá quase no final da fila, houve um diz-que-diz-que, um fala-fala, e o bode acabou ganhando liberdade para ir cheirar a bota de uma dama cujo perfume abarcava quase a pista inteira de vaquejada. O bodete achegou-se e começou a saborear daquele perfume jamais visto no terreiro ou na vida, e foi se engraçando. A moça achou a maior graça, pois sabia da fama do velho sabujo caprináceo e foi deixando, até porque todo mundo não tirava os olhos da cena empolgante. A princesa despejava um sorriso estonteante para todos, enquanto o bodete morria de amores, na cheiração.
O certo é que o bodete esqueceu-se do trabalho, inebriado pelo cheiro estonteante da moçoila. O velho fazendeiro saiu arrastando o animal pela corda, em direção do tumulto dos homens em discussão.
Levou o bode para uma bota masculina, para ele demonstrar sua sabença, mas o animal teve uma inspiração divina e se mostrou muito zangado, pinoteando, resfolegando, rangendo os dentes.
- Xiii! o bode está com paixonite! - sentenciaram os mais velhos.
Nesse ponto, para acabar a confusão, um famoso corredor das vaquejadas e dos botequins achegou-se e esnobou a linda bota de cano longo:
- Cheira aí, ô, para mostrar que sou macho e direito.
O bodete ergueu o sobrolho, empinou a trunfa, aquele amarfanhado monte de cabelos na testa, arrepiou a crina, bufou com cara feia e cravou os dentes na botina, arrancando um grito do esnobe vaqueiro.
Ninguém entendeu nada, mas o bodete continuou seu trabalho, mordendo todas as botinas de macho que encontrava pela frente. A cada mordida, dava um sorriso de satisfação, pois estava enfeitiçado pelo doce aroma almiscarado da jovem moça. Vingava-se nas botas enfeitadas dos machos.
Daí para frente, o bodete transformou-se em bode normal, sonhador, sempre gastando longo tempo cheirando as fêmeas do curral, para ver se descobria, de novo, o doce aroma que o havia enfeitiçado.

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