quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Angicos, Terra do Pelo.

Na década de 50 quando residia em Angicos, a cidade ainda era servida pelo trem, pertencente a Estrada de Ferro Sampaio Correia. A chegada desse utilitário inesquecível, nas cidades, era uma festa. E todas as paradas obrigatórias de Natal a São Rafael, existiam nas estações, pessoas vendendo iguarias. Ex: Em Taipú era o grude, em Pedra Preta era o milho assado ou cozinhado e em Angicos, era o tradicional pelo. Muitas mulheres e até crianças, vendiam os pratos de pelos aos viajantes, que por sua vez, certamente, faziam os comentários sobre o saboroso fruto da palmatória, que existia em abundância nas terras angicanas. O ministro Aluizio Alves(in memoriam) Angicano nato, quando chegava a sua cidade natal, não faltavam amigos e correligionários para lhe ofertarem o saboroso doce de pelo. Então, Angicos por muito tempo, era conhecida pela terra do pelo. Hoje não se vê mais pessoas vendendo o precioso fruto da palmatória em Angicos. Muito raro. A última vez que ví essa tradição ser resgatada, foi quando minha querida Zélia Alves(in memoriam) era prefeita, colocou um stander na festa dos municípios, no Parque Aristófanes Fernandes, e a principal iguaria era o doce de pelo, e ela com o seu sorrizão aberto sabia muito bem vender a imagem da sua querida Angicos que tanto amava. Câmara Cascudo, no seu livro Viajando o Sertão, comentou que comeu doce de pelo em Assú, o que foi após alguns anos ratificado pela jornalista Clotilde Tavares, em uma das suas idas ao nosso sertão. Tenho impressão que o nosso glorioso e imortal Cascudo ao invés de Angicos ele citou Assú. Estamos postando este comentário de Clotilde após alguns anos.

Doce de pelo

Clotilde Tavares | 8 de junho de 2009
casc100Em um livro de Câmara Cascudo, Viajando o Sertão, ele faz referência a um certo “doce de palmatória” que havia comido em Assu, cidade do Rio Grande do Norte pela qual o grande folclorista passou, na viagem à qual se refere o título do livro, realizada entre 16 e 28 de maio de 1934.
Curiosa que sou, e metida também a aventureira, refiz esse trajeto de Cascudo 65 anos depois de realizado, no ano de 1999, como você pode ver clicando aqui. A viagem foi gloriosa, cheia de experiências, visões, sabores e poesia, e se nunca publiquei esse relato é porque ninguém se interessou por editá-lo e eu não tinha – e nem tenho – dinheiro suficiente para tanto. Dorme sossegado numa das minhas gavetas, na companhia de textos e mais textos que tiveram o destino do ineditismo. Já escrevei esses mesmo parágrafo em outro post deste blog, aqui.
Ao fundo, a Serra Braca. A foto é de Gustavo Moura, que foi comigo em um trecho da viagem.
Ao fundo, a Serra Braca. A foto é de Gustavo Moura, que foi comigo em um trecho da viagem.
Uma das coisas que não consegui fazer na viagem foi conhecer o tal doce, que Cascudo teria degustado em Assu, em jantar oferecido pelo Dr. Ezequiel Fonseca. Gosto de comer coisas esquisitas, de sabores exóticos, e quando me deparei com essa referência, principalmente quando Cascudo diz que o doce era “superior às geléias de morango”, fiquei curiosíssima.
Ao chegar em Assu, fui informada de que o tal doce de palmatória era chamado de “doce de pelo” e que não era típico de Assu, mas de Angicos, cidade próxima. Embora me mimassem com uma sobremesa deliciosa de mel de engenho com farinha de rosca, não foi possível degustar o tal doce de pelo, que eu não conseguia imaginar como seria.
Carmen Vasconcelos
Carmen Vasconcelos
Finalmente, depois de mais de um ano assuntando aqui e ali em busca do tal doce, consegui ter acesso a esse prodígio da culinária angicana pelas mãos da poeta Carmen Vasconcelos, que me trouxe uma porção, preparada pelas mãos de Dona Terezinha, sua mãe, ambas angicanas de quatro costados. Lá se vão dez anos, mas a experiência sensorial e gustativa foi marcante, e para mim parece que foi ontem.
O doce é estranho. Imagine você que com tanta coisa no mundo para transformar em doce, o cristão inventa de tirar a polpa de uma palmatória cheia de pelos (daí o nome “doce de pelo”). A primeira coisa que se faz, depois de colhido o fruto da palmatória, é tirar-lhe os pelos, ou espinhos; a rigor, o doce de pelo não tem pelo. Bem, uma vez eliminado o pelo, retira-se a polpa do fruto, que se parece assim com um algodão acinzentado e um pouco úmido, polpa essa que também pode ser comida tal e qual, acrescentando-se apenas um pouco de açúcar, parecida com a polpa do ingá. Dessa polpa é que se faz o doce.
Glóbulos
Pérolas douradas de sol.
E o sabor? Bem, o sabor logicamente é de doce, mas feche os olhos e imagine-se colocando na boca um glóbulo do tamanho de uma uva grande e sentir esse glóbulo se desmanchar como minúsculas pérolas douradas dentro da sua boca. Sim, porque o gosto desse doce é dourado, cor de ouro.
As pérolas de ouro ficam rolando deliciosamente dentro da sua boca, numa experiência sensorial única, onde o sabor e a textura se misturam com a sensação de cor-de-ouro, do sol escaldante do sertão acumulado e concentrado no fruto áspero da palmatória e revelado pelas mãos sábias das doceiras angicanas.
Existem coisas, caro leitor, que a gente não deve morrer sem fazer. Provar o doce de pelo é uma delas. Iguaria dos deuses, sabor estranho, frutos dourados do sol: tudo isso é o doce de pelo, glória da nossa culinária popular.

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