O dia em que Dorotéia engoliu a agulha
Era
um domingo, dia de descanso, mas o médico-veterinário foi acordado com
uma zoada na porta. Era Seu Tonho, marido de Dona Zefa, de um sítio
muito longe, nas grotas.
- Doutor, por favor, venha logo, Dorotéia engoliu uma agulha. O que que eu faço?
Depois
de saber que Dorotéia não era nenhuma moça, nem donzela, mas apenas a
ovelha de estimação de Dona Zefa, o veterinário nem tomou café e saiu
correndo para apagar o incêndio, mesmo sem ter água, pois como diabos
pode alguém pensar que, um dia, uma ovelha poderia engolir uma agulha?
Finalmente, chegou no sítio e lá estava a ovelha Dorotéia, tranquila, serena, sem entender nada de tamanha correria.
- É essa?
- Ela mesmo, seu doutor!
O
médico olhou, olhou, viu que estava na chuva para se molhar e, então,
começou clinicando: examinou a boca, língua, esôfago - nada de agulha,
nada de ferimentos, nenhuma gota de sangue, nada! Fez um muxoxo de
desaprovação, franziu as sobrancelhas, contraiu a testa, coçou a cabeça,
e escutou a explicação de Dona Zefa:
-
Mas, doutor, eu vi quando a santinha engoliu a agulha. Foi assim: eu
estava trabalhando na minha costura, quando a agulha caiu no chão, com
um pedaço de linha vermelha ainda enfiada. A Dorotéia veio, cheirou,
cheirou, lambeu a linha e acabou engolindo tudo, antes de eu conseguir
apanhar. Quem podia imaginar que ia engolir uma agulha?
- E como é que a senhora sabe que ela engoliu, mesmo?
- Uai, não sobrou nem a linha vermelha no chão. Então, engoliu tudo junto.
Acreditando
na mulher e supondo o pior, ou seja, que a dita agulha estaria muito
bem espetada em algum lugar no bucho do animal, talvez fosse bom buscar
um médico-veterinário-gastroenterologista, para fazer algum milagre. Mas
onde achar um especialista na extração de agulha dos bofes de um animal
naquele cafundó?
Tomou
mais uns três cafezinhos; achou melhor não apalpar mais nenhum lugar do
animal, pois - de repente - iria acabar espetando ainda mais a agulha.
Então, deu o veredito:
- Bom! Só tem um jeito: é arriscar uma operação das bem fedorentas.
Ninguém
entendeu, mas todo mundo sabia que o doutor devia saber o que estava
falando. Ele puxou um bloco de papel, anotou umas coisas e despachou o
vaqueiro:
-
Agora é com com você e suas pernas. Seja ligeiro. Vá até o hospital do
povoado e compre o que está aqui: duas ampolinhas de a-po-mor-fi-na,
para provocar vômito num animal.
Nem
bem acabou de falar e a poeira levantou-se no terreiro, disparando a
dupla pela porteira. Num vape-vupe e mais alguns cafés, eis que o cavalo
ido no galope já estava coltando no trote. Montado, o remédio nas mãos e
uma enorme alegria na cara do vaqueiro, que se sentia o verdadeiro
herói do domingo.
O
veterinário pegou o remédio, chamou mais gente, agarraram Dorotéia,
seguraram a cabeça inclinada e enfiaram o remédio goela abaixo. Ficaram
segurando a coitada, com a boca escancarada:
- É o jeito, num já-já-já ela vai vomitar e a gente tem que pegar a linha vermelha, antes de ela engolir de novo.
Dorotéia
deu uns repuxos, tentou vencer a turba que estava agarrada, mas não
teve jeito, acabou ficando vermelha, vermelha, com tanta raiva que foi
subindo pelo espinhaço, chegou no pescoço, subiu pela goela e acabou
numa tosse, outra tosse, mais outra, e veio uma enorme convulsão,
lançando um oceano de vômito esverdeado, misturando suas últimas
comilanças, num cheiro de matar defunto fresco. De repente, o doutor
gritou:
- Ali, a linha vermelha!
Meteu
a mão na boca de Dorotéia, lambrecando-se todo, mas agarrou a linha
vermelha. Enrolou no dedo melado, fez alguma força, tentando puxar a
agulha, até ouvir um “trach”.
- Xiiiiii! Acho que a agulha se partiu no esôfago de Dorotéia.
Nas puxadelas, o animal corcoveava, sacudia, vomitava, gargarejava, roncava, numa cena de fazer dó.
O doutor continuou puxando, devagarzinho, e eis que algo brilha:
- É a agulha, mesmo! E está inteirinha!
Vendo
o final da tragédia, Dona Zefa ajoelhou-se, agradeceu ao Padim Ciço,
enrodilhou os braços nas pernas do médico, festejando:
- Doutor, o senhor é mesmo um Deus!
O
veterinário não sabia o que fazer, com a mulher enrolada em suas pernas
e Seu Tonho sorridente, sem se importar com essa demonstração exagerada
de agradecimento.
- Dorotéia vai ficar boa, não vai, seu doutor?
-
Tá, tá, tá. Vai ficar muito boa. Agora, é só dar sulfa de 6 em 6 horas.
E só comida leve. Segure a ovelha na sopinha por 3 dias. Nada de ração,
milho, coisa dura.
- E como lhe pagar, doutor?
O veterinário pensou, pensou, pensou, e respondeu:
-
Me arranje uma toalha seca, que eu vou tomar um banho no açude, e tirar
essa fedentina, porque médico vomitado não é boa coisa em lugar algum
do mundo.
Fonte: Baseado em Pereira, Edson, “O galinhista”, Goiânia, 2010, Funape, IPTESP - pág. 37.
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