quarta-feira, 11 de abril de 2012

O preço da cabra

- 05/04/2012

Seu Joca vivia falando pelos cotovelos, isso todo mundo sabia, embora fosse sempre uma converseira meio fiada, sem nexo, de quem precisa gastar as cordas. Sempre estava à procura de um bom papo para ver a vida passar. Sua vida estava resumida em encher o tempo com papos e papos sobre qualquer coisa. Mas, além disso, tinha uma grande vantagem: suas miunças eram sempre muito bonitas e bem preparadas. Tamanho gogó fazia os melhores animais de seu rincão. Quando alguém perguntava alguma coisa sobre qualquer de seus animais, tinha que estar preparado para escutar uma ladainha de todos os santos.
Na feira de Cabrobó, estava meio encafurnado, deus-sabe-porquê, e nada ajudava, a não ser uma talagada que se repetia de meia em meia hora. Faltava uma horinha de boa conversa - pensava ele, mas como conseguir isso no meio de gente tão diferente de suas bandas? Num estalo, teve uma ideia: colocar sua maravilhosa cabrita campeã à venda, para esquentar o ambiente! Chamou o inspetor, pediu um papel e mandou escrever: "pra vender". Pensou, pensou, pensou, e acrescentou: "Preço = 10 contos". Era dinheiro que não se acabava mais.

 

Eis que a notícia correu e chegou até a barbearia, onde Seu Timóteo raspava os últimos fios brancos que ainda insistiam em aparecer na pele enrugada pelo sol das caatingas franciscanas. O velho sertanejo era um comprador de tudo que fosse bom e logo matusquelou:
- Vixe, a cabra já é minha e tem idade para render mais premiações.
Deixou o barbeiro e, em poucos minutos, já estava cobiçando a joia preciosa, a princesa, rainha, duquesa, a cabra maravilhosa que Seu Joca abestalhara em anunciar a venda.
Esperto como só ele, Timóteo, comprador da única indulgência papal que chegara ao sertão, logo tratou de levar a conversa para o lado de sua sardinha, na intenção de obter um bom desconto sobre aquela fortuna que ia gastar:
- Comprada já está, mas vamos discutir esses dez contos, Seu Joca...
Nem chegou a terminar, quando a resposta veio ligeira, num atropelo aos seus cabelos brancos.
- Que dez contos? Não tem dez contos, não. A cabra é pra vender, sim, mas por doze contos.
- Mas tá até escrito aqui no papel: 10 contos. Escrito é lei; e lei é pra ser cumprida por homem de cabedal. E o bode cumelão está lá em casa, só esperando esta grande honraria.
- Deixa de enrolança, Seu Timóteo, que todo mundo conhece suas letras e todo mundo conhece minhas miunças. Sou gente pobre, mas nem pensar em brocoió de botar canga. O preço sempre foi doze contos; o diabo do garoto que escreveu errou, mas a gente conserta agora, pois aqui é palavra firme, de boca de homem de respeito, e não de um amostrado qualquer.
O novo preço estalou como uma bofetada no velho catingueiro, pois cheirava embromação que poderia não ter fim, se cedesse.
- Bom, a princesa é tão apetrechada que merece uma boa sorte e por certo pode valer muito mais que cem, duzentos, trezentos réis como qualquer catraia de solta. Acho que ninguém iria pagar os dez contos, mas o amigo estuda aí, com muito jeito, para ver como fica. Se quiser, vamos ali ao boteco enxugar a conversa.
Assim, os dois foram beber a cana famosa, antiga, misturada em alfinim dos bons, trocando papo e copo, sem se importar com a hora e com os mandados de deus e do diabo. E lá ficaram os dois encafifados, cada um tentando encan­dear o outro, um com cara de entufado e outro de entrouxado, gastando um proseado cada vez mais arrastado, no suceder de três, cinco, dez copos de pura fogueira que descia queimando a garganta e o juízo. Às vezes, lembrando do assunto, Seu Joca retornava:
- Não se avexe, Seu Timóteo, que a cabra vai ser sua, é só mor de arrematar a valia da princesa.
- Tá, eu sei, mas a conversa tá meio engembrada, entronchando pra cá e pra lá, e nada de chegar ao "vere-dicto" dos finalmentes.
- Nem se amofine, pois tudo tem um final...
- Bem eu sei disso e já trouxe aqui um magote de notas novinhas, mas não contava com essa conversa malamanhada, apertando a muleira da gente. ­Parece que agora só falta o amigo pedir penico.
- Somos gente de bem, Seu Timóteo, pelejar é bom, mas sem qualquer peitica, pois a cabra vale a justeza de um bom preço. No azogado não pode ter negócio.
E veio o tiragosto, depois uma paçoca com pimenta, o relógio descambava entrando tarde afora e a conversa não andava.
- Pois é isso que preocupa, Seu Joca, a converseira tá caminhando pra reborreia, de gente que engatou a marcha-ré. A história de vender a rainha tá cheirando seixo. Tá chegando a hora de procurar o meu caminho.
O bafo de cachaça subia, o am­biente esquentava, Seu Joca fuzilou:
- Pois tá certo, Seu Timóteo, que as grimpas estão se enchendo e é melhor arrolhar o nó, antes que a garrafa estoure. Diga então lá o preço que vale a princesa, pro final da conversa.
- Acho que vale o preço de tudo que gasto num ano com a fazenda. É um ano por um animal, sete contos, preço zerado! É pegar ou largar. E veja que estou pedindo para comprar, pois ninguém mais pode comprar um animal pelo preço de um rebanho.
- Ora, Seu Timóteo, o preço errado era dez e, agora, caiu para sete? Por que sete, e não oito, nove, dez?
- Porque é o tempo que a gente está gastando pra fechar esse negócio. Já vai a um conto por hora, nunca se viu conversa tão cara como essa! Pois tá encerrado, eu pago os dez contos. Cadê a cabra?
Seu Joca deu a ordem, o garoto saiu correndo e logo voltava com uma cabra lustrada, perfumada, com coleira, nos trinques.
- Eita, que agora completou. Essa não é a princesa, Seu Joca!
- Claro que é. Já foi campeã. Em casa tudo é princesa, não tem melhor e pior.
- Mas a notícia era outra. A placa era outra.
- Nada disso, a placa estava na baia certa.
- Eita estrupício, eu queria comprar a cabra azulega, paixão dos olhos.
- Aquela nunca esteve à venda.
- Então por que botou preço?
- Eu não botei preço nela, botei nessa.
- Ora, vamos conversar sério, Seu Joca, o que vosmecê queria mesmo?
Com jeito de menino arrependido, Seu Joca franziu a testa, encarou Seu Timóteo, seriamente, e encerrou:
- Sabe, Seu Timóteo, eu queria mesmo um bom amigo para beber no boteco e botar a prosa em dia. Nem eu preciso vender qualquer cabra, nem o senhor precisa comprar.

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