Carne
Carne brasileira atinge patamar superior com selo de qualidade
Programas de certificação são aposta de associações de raças para sucesso do produto
Todo mundo já deve
ter ouvido, em algum momento da vida, que carne boa é a uruguaia ou a
argentina. No mundo, então, elas ganham companhia dos produtos
australianos, norte-americanos e até mesmo japoneses. Ainda vista como
fornecedora de commodities, a pecuária brasileira vem buscando mudar seu
conceito, interna e externamente, para entrar definitivamente para essa
"elite" da carne bovina mundial.
Uma das apostas de maior sucesso são os
programas de certificação das próprias associações de raças, que jogam
para cima o padrão e permitem dar volume a um segmento premium até pouco
tempo quase inexistente.
Há, hoje, seis programas a pleno vapor no
País, segundo a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA),
que assumiu a capitania do sistema: os das raças Angus, Hereford,
Charolês, Devon, Nelore e Wagyu. Outros cinco encontram-se em outros
estágios, com protocolos já assinados ou em desenvolvimento e análise,
entre eles as raças Brangus, Senepol e Braford, além de um protocolo que
não abrange raça, mas território e método de criação, referente à carne
sustentável do Pantanal, organizado pela Associação Brasileira de
Produtores de Orgânicos. Talvez prova do sucesso do modelo, há, ainda,
uma proposta em análise da raça ovina Texel, que seria a primeira fora
da cadeia bovina.
Parte de uma série de iniciativas que
buscam melhorar a qualidade do rebanho brasileiro nas últimas décadas,
os protocolos mantidos pelas associações apresentam relativa
similaridade entre si. Em comum, para a certificação, há a exigência de
padrão racial (geralmente com pelo menos metade do sangue da raça
certificadora), de idade dos animais e de parâmetros como a espessura da
camada de gordura das carcaças.
Os requisitos são avaliados por técnicos
das associações nas indústrias. Em troca, os produtores recebem
bonificações na venda dos animais aos frigoríficos, que chegam a até 10%
de sobrepreço, pois o produto final também consegue ser vendido por um
valor mais elevado nas gôndolas.
O primeiro destes programas teve início há
exatos 20 anos, embora o primeiro abate só tenha ocorrido em 1999. Foi o
Carne Pampa (o nome faz menção à pelagem característica dos animais,
não ao bioma), criado pela Associação Brasileira de Hereford e Braford,
em parceria com o então Frigorífico Mercosul, hoje incorporado à
Marfrig, de Bagé.
O impulso durou pouco, afetado pela crise
da febre aftosa na virada do milênio que paralisou os abates do programa
em 2001. O Carne Pampa voltaria a rodar em 2005, já com outros
parceiros (o Frigorífico Silva, de Santa Maria, e o Grupo Zaffari).
Hoje, o selo da Hereford é integrado por seis frigoríficos e mais de 3
mil criadores.
Quando retornou, porém, o Carne Pampa já
tinha companhia. Dois anos antes, em 2003, a Associação Brasileira de
Angus havia dado a largada para o seu programa de carne certificada.
Junto com o mesmo Mercosul e o Grupo Zaffari, no primeiro mês do
programa foram produzidos 2,3 mil quilos de carne Angus, de animais de
20 produtores, que dariam origem ao maior dos protocolos no País.
Completando 15 anos de vida, atualmente são 6 mil criadores, 40 plantas
industriais e produção de cerca de 2,5 milhões de toneladas por mês no
programa.
Das raças europeias presentes no Estado,
outras duas criaram seus próprios protocolos mais recentemente. Em 2014,
foi a vez da Associação Brasileira de Criadores de Charolês, programa
que atualmente conta com dois frigoríficos participantes, com cerca de
350 produtores. E, recém completando um ano de vida, o programa da
Associação Brasileira da Raça Devon é o 'caçula' da turma, com um
frigorífico e 150 produtores cadastrados. Ambos os protocolos, porém,
ainda têm seus participantes restritos à Santa Catarina. Mesmo assim, as
duas associações trabalham para integrar a cadeia gaúcha ao sistema.
"Todos esses programas vêm trazer
transparência ao consumidor, que hoje consegue saber que aquele corte
tem um rótulo com uma garantia por trás, que a associação garante o
padrão de qualidade", afirma o coordenador dos Protocolos de
Rastreabilidade da CNA, Paulo Costa.
O ponto chave, para Costa, reside na
transparência. Embora ainda majoritariamente restritas à bovinocultura e
começando a chegar aos ovinos, essas iniciativas poderiam ser adotadas
por praticamente qualquer cadeia agrícola, segundo o coordenador,
citando demandas de mercado como galinhas criadas soltas e peixes sem
antibióticos como exemplos.
Angus já possui escala e alcança exterior
Entre todos os programas de certificação
do País, o mantido pela Associação Brasileira de Angus é o visto como
modelo pelo alcance que atingiu. Segundo o gerente do programa, Fábio
Schuler Medeiros, os rótulos Angus já respondem por 45% da carne
"premium" vendida no Brasil - que engloba ainda os programas das outras
raças, as marcas próprias da indústria e a carne importada de países
como Argentina, Uruguai, Austrália e Estados Unidos. Levando em conta só
a produção nacional, a participação seria de mais de 80%.
Um dos motivos para o crescimento, segundo
Medeiros, foi ter alcançado sucesso em um dos objetivos iniciais do
programa, que era conseguir integrar a cadeia produtiva e gerar
benefícios para todos os elos.
O grande salto apontado, porém, foi a real
profissionalização do programa, iniciada em 2005 e consolidada em 2007,
com o estabelecimento de padrões auditáveis e, com isso, certificações
internacionais. "Isso nos catapultou para fora do Estado, ajudou a
ganhar o Brasil todo", comenta Medeiros, que credita a isso o interesse
maior das indústrias da metade Norte do País pelo programa.
Outro ponto, entretanto, contribuiu para o
conhecimento da marca. Em 2011, a carne - e o nome - da raça chegaram à
rede McDonald's, o que popularizou a palavra britânica Angus em solo
nacional. Mesmo já sem a parceria, o fast food ajudou no boom. De um
único supermercado, no início, as carnes já chegam agora a 5 mil pontos
de venda no País, com crescimento anual de vendas em torno de 20% desde
2007, segundo Medeiros.
O ganho de escala ajudou o programa, a
partir de 2014, a voltar suas atenções para o exterior. Embora a venda
externa ainda seja pequena, 5% do volume produzido, os produtos
certificados estão sendo exportados por US$ 9,5 mil a tonelada, mais do
que o dobro da média nacional. No mês passado, a Associação levou o
produto à Sial Paris, talvez a mais importante feira alimentícia do
mundo, em iniciativa que repete anualmente. "É um trabalho de formiga. É
um produto que ainda é muito mais valorizado no mercado interno do que
na exportação", comenta o gerente.
Coordenador dos protocolos de
rastreabilidade da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil
(CNA), Paulo Costa, argumenta que o programa da Angus vê resultados de
uma longa caminhada. "Foi feita muita publicidade, um trabalho de
excelência na qualidade, inúmeros seminários, degustações, feiras, para
agora estar colhendo os frutos", comenta. Costa também vê o programa com
relevância para o setor externo, por ter atingido volume que permite
buscar outros mercados e, com isso, tirar a carne brasileira do rol das
commodities. As outras raças, argumenta o coordenador, ainda não
conseguem atender a toda a demanda pelos seus produtos internamente,
tornando mais difícil que se voltem, por enquanto, ao exterior.
"Até mesmo a imagem da carne brasileira
ainda precisa ser bem trabalhada", comenta. O coordenador exemplifica a
situação com o relato de brasileiros que foram a restaurantes na França
que vendiam 'carne argentina' e, após pedirem para a ver a embalagem,
descobriram que era, na verdade, carne brasileira. "Precisamos tirar
algumas impressões do passado e estamos trabalhando para revertê-las,
não só no campo, mas também no mercado", defende Costa.
Padrão mais elevado de consumo segue tendência de outros setores
Ainda que a exportação seja o desejo da
cadeia produtiva, pelo menos no curto e médio prazos o grande "front" da
carne brasileira é, mesmo, o mercado consumidor interno. Mesmo dentro
do Brasil, o segmento "premium" ainda busca seu espaço e, a carne
brasileira, o seu quinhão em meio aos produtos importados.
Segundo o superintendente da Associação
Brasileira de Supermercados (Abras), Márcio Milan, o nicho como um todo
representa 15% na venda de carnes no País. O executivo lembra que por
muito tempo a carne bovina não conseguia manter padrão de qualidade nem
possuía marcas, o que mudou nos últimos anos. "Os consumidores começaram
a perceber uma carne de melhor qualidade, cortes especiais e
diferenciados que caíram no gosto dos mais exigentes", argumenta Milan.
Diretor do Grupo Zaffari, rede varejista
que deu o suporte inicial aos dois programas pioneiros do País (Hereford
e Angus), Claudio Luiz Zaffari, comenta que o processo no Estado vem
desde os anos 1970, com o programa Novilho Precoce, coordenado pelo
governo gaúcho. A oferta de carne resfriada na entressafra se chocou com
o padrão da época, onde havia apenas a venda de carne descongelada da
safra anterior, representando "uma forte mudança de cultura para os
gaúchos", segundo Zaffari, que passaram a comprar carne embalada a
vácuo.
Mesmo que lentamente, o bom resultado da
iniciativa ajudou que outros passos fossem dados nessa direção. "Aos
poucos foram sendo rompidas as barreiras e formando nos criadores,
indústrias e consumidores, a consciência da possibilidade de mudar os
hábitos tão antigos", comenta Zaffari, que hoje possui marcas e padrões
próprios de carne bovina premium em suas lojas.
Não por acaso, outros setores alimentícios
passam pelo mesmo processo. Cafés, chocolates, cervejas, para citar
apenas alguns, também apostaram em segmentos de qualidade - e preço -
mais elevados, com sucesso. A carne bovina, de acordo com o
superintendente da Abras, acompanha o movimento de forma gradativa, mas
em velocidade menor, pois os outros já possuem marcas consolidadas e que
conseguem transmitir atributos de qualidade, algo ainda incipiente na
carne.
Um dos trunfos do segmento é a fidelização
dos chefs de cozinha, que ajudam a respaldar e difundir as carnes
certificadas de raças. "Os chefs hoje procuram esses cortes por saberem
que é diferenciado e que o padrão é o mesmo", comenta a gerente do
programa Carne Pampa, Fabiana Rosa de Freitas. O uso é um aliado no
confronto com as carnes dos países vizinhos, que já tinham sua imagem de
qualidade difundida quando a pecuária brasileira entrou no jogo. "Nossa
carne é tão boa quanto, mas temos que informar o consumidor. É difícil
para mudar, mas vamos fazer de tudo para que seja reconhecida", continua
Fabiana.
Programas promovem difusão da genética e geram crescimento dos rebanhos de raça
Se em uma ponta da cadeia a busca é pelo
aumento na demanda pela carne de qualidade, a maior remuneração paga
pelos frigoríficos aos produtores resulta, na outra ponta, em uma maior
difusão da genética das raças bovinas europeias criadas no Rio Grande do
Sul.
"O programa de certificação serve também
para alavancar a genética. Gera essa promoção das raças, faz com que
aumente o pedido por doses, por animais para terminação", comenta a
gerente do programa Carne Pampa, Fabiana Rosa de Freitas. No mês
passado, exemplifica a executiva, o início do programa em um frigorífico
em Boituva (SP) resultou, apenas uma semana depois, na encomenda de 600
doses de sêmen Hereford para produtores da região.
Já há mais de uma década no mercado,
Fabiana projeta que poderia vender mais carne Hereford caso houvesse
oferta maior do que os 1,1 milhão de toneladas desossadas produzidos em
2017. "Se tivéssemos o triplo de produção, ainda faltaria carne para
atender ao mercado, que já nos conhece", afirma a gerente.
Mais recente dos programas, a raça Devon,
por exemplo, também vê agora um incentivo para aumento no volume de
animais. "As feiras de touros têm sido um sucesso, com pista limpa e
excelentes preços. Está havendo correspondência", conta a coordenadora
do programa de certificação da Devon, Simone Bianchini.
O volume hoje ainda é pequeno pela questão
do acabamento, segundo a coordenadora, que espera um crescimento com a
instituição de um novo produto dentro do programa, a partir de 2019, de
novilhos 100% criados a pasto. Nos feriados, chega a faltar carne
certificada nos mercados catarinenses, principal reduto do programa.
O quadro é parecido com o visto no
Charolês, que utilizou o programa dentro de estratégias para melhorar a
criação da raça no Brasil. "O Charolês mudou, ficou muito mais
funcional, com melhor acabamento. É outra raça de quem a conheceu 20
anos atrás", argumenta o coordenador do programa de carne Charolês
certificada, Eldomar Renato Kommers, que também comemora a venda de
reprodutores em feiras em Santa Catarina. Conhecida pelo rápido ganho de
peso, a raça aposta na possibilidade de abate de novilhos já com grande
quantidade de carne. "Ainda estamos engatinhando. Tudo o que produzimos
hoje é comercializado, e o importante é que tem sido bem aceito",
afirma Kommers.
Dentro do aparente cenário de competição,
entretanto, as associações afirmam manter boas relações entre si. "Tem
espaço para todo mundo, o Brasil é muito grande", afirma Fabiana, da
Hereford. "Atuamos todos em conjunto, com a ideia de mostrar que a nossa
carne é boa, é do Brasil, tem preço bom e não precisamos comprar de
fora", acrescenta Simone, da Devon.
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