segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

"O tatu e a sabedoria", crônica de Claúdio Faviere

Conheça alguns provérbios populares que utilizam hábitos de animais para exprimir um ditado

sítio-roça (Foto: Pixabay)
Bar da roça. Como em todos, vende um pouco de tudo: de arreio de cavalo, a chupeta, de remédio para gado a doces, de arroz e feijão a veneno para ratos. Mas nenhum produto é mais solicitado que a “marvada” pinga.
Uns encostados no balcão. Outros, na pequena e desnivelada mesa de bilhar. A conversa rola solta. O assunto é um rapazinho do próprio lugar que anda roubando as casas aqui do bairro do Monjolo, uma das vilas rurais de Cunha, montanhosa e encachoeirada estância climática no fundo do Vale do Paraíba.
Antes, apenas roubava. Agora dera de agredir as pessoas para roubar, principalmente as idosas que moram sozinha, e destruir o que não leva, como furar panelas, botar fogo em colchões, arrebentar forros de casa. Um inferno.
A peãozada do bar está revoltada. Um deles grunhe com os lábios franzidos: “Quero ver a caveira dele até carruíra (corruíra) fazer ninho dentro”.
Claúdio Faviere, autor da crônica "O tatu e a sabedoria", publicada na Revista Globo Rural em 1996 (Foto: Marlene Toniolo Carvalho)
Diante da minha urbana ignorância por não ter entendido nada, e talvez pela expressão de espanto, todos caem na gargalhada. O clima de botequim se transforma, se descontrai. E, com humor e fazendo chacota do meu jeito, passam então a explicar o significado do provérbio.
Alguns sitiantes têm o hábito de fincar a cabeça do boi abatido, depois de descarnada, em um mourão. Com o tempo, fica apenas o esqueleto da cabeça do gado, seco e oco. É o lugar preferido da corruíra para fazer ninho. Quer dizer: para chegar ao ponto de o pássaro habitar aquela caveira é necessário que ela esteja seca, definitiva e comprovadamente morta. É o destino que o peão deseja ao desafeto.
Fim de tarde e da resistência para mais um pinga.  Aos poucos, os homens do bar vão montado os cavalos e seguindo em direção as roças. Jair, um deles, cavalga em sentido contrário, em direção à cidade. Demonstra ir preocupado com a sorte de sua casa e dos pertence, devido ao garoto-ladrão. Vira-se para o “seo” Derli, dono do bar e provoca: “Ê cumpadre, não vai você mesmo roubar minha casa enquanto eu estiver fora e botar a culpa no ladrãozinho”. O dono do bar ri pelo canto da boca: “É... na cacunda (costas) do lagarto até tatu bebe ovo”.
De novo, boas gargalhadas pelo meu espanto. E mais uma sessão de chacotas e de detalhadas explicações. Tradução: lagarto tem o hábito de “beber” ovo, ou seja, chupar a gema e a clara por um pequeno orifício feito por ele na casca, coisa que tatu, de jeito nenhum, faz. Quer dizer: mesmo que não tenha sido o lagarto que “bebeu” o ovo, a culpa será sempre dele. Mesmo que não venha a ser o rapaz que roube a casa, ele será sempre o responsável pelo fato de ser quem sempre rouba.
Depois desta tarde, minha atenção ficou aguçada para o provérbios populares que se utilizam dos hábitos de animais para exprimir um ditado. De longe, o tatu ganha o placar. Afora o já popularizado pelas crianças de qualquer lugar “é, pensa que eu sou tatu?” (bobo), existem ditados mais específicos que retratam a vida da roça. Um deles: “Quando chove, nesta ladeira de terra não sobe nem tatu ferrado”. O animal tem força muito grande nas pernas, tanto que uma de suas principais funções é cavar buracos em barrancos. Se ele, com esta força, além de tudo, “ferrado” (com ferraduras utilizadas em cavalos) não consegue subir a ladeira enlameada, nenhum veículo conseguirá. Serve para exprimir o estado lamentável que fica a estrada após as chuvas.
Outra: “Se achar pau arcado, até tatu trepa”. Se existe uma coisa que o bicho não faz é subir em árvore. Mas se tiver um “pau arcado” (tronco em diagonal ou galho rebaixado) até ele consegue subir porque a árvore “se rebaixou”, facilitou. Então, quanto mais a pessoa abaixa a cabeça, se submete, não reage, o outro pode abusar, perder o respeito.
O bar agora está vazio, eu e o dono. Os dois sentados na soleira da porta saboreando o clarão da lua cheia. O efeito de umas cervejas a mais me torna melancólico e saudoso de uma ex-mulher. Comento isto com o Derli e, ao mesmo tempo, demonstro temor pelo retorno das cosas ruins que aconteceram na relação, caso fosse reatada, segundo meus devaneios etílicos. Mas que sentia saudade, isto sentia, disse o dono do bar. Sem se voltar para mim, com o olhar dirigido para as mãos que enrola um “paieiro”, arremata: “É, meu caro, o tatu sempre corre para o buraco velho”. Hoje era dia. Explicação: o tatu é um animal que leva a vida fazendo buracos em barrancos, como já foi dito. O primeiro da vida é para onde ele sempre retorna, arruma, limpa, apesar de ter aberto dezenas de outros depois deste. Em caso de apuro, é para o primeiro que corre a se abrigar. Ao pretender retornar a uma ex-mulher, o ditado expressa o desejo de voltar a um lugar seguro, já conhecido.
O dono do bar, senhor de quase 60 anos, tem no rosto a expressão peralta de criança, que faz traquinagem. Trocamos olhares e caímos na gargalhada quando, enfim, percebo o sentido malicioso que o provérbio também contém. O eco de nossas risadas se espalha pelo vale e parece até alcançar a lua que tenta um espaço no céu carregado de estrelas.


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