Mandioca vira iguaria da alta gastronomia na forma de tapioca, tucupi, polvilho e farinhas
O consumo de tapioca, por exemplo, saltou de 10 mil toneladas em 2010 para 58 mil em 2016
Alimento
presente na culinária de todas as regiões do Brasil, a mandioca tem
sido cada vez mais utilizada na alta gastronomia brasileira. É o que
constata a chef paraense Daniela Martins, proprietária do restaurante Lá
em Casa, de Belém (PA). O uso da mandioca pelos chefs de cozinha tem
aumentado consideravelmente, não só na forma de tapioca, mas também como
farinhas e tucupi, que começaram a sair do Pará para restaurantes
requintados em todo o Brasil. “Como chefs de cozinha, temos sempre de
procurar novidades, e os produtos da Amazônia, onde a base da
alimentação é a mandioca, são a grande descoberta da atualidade”, conta.
Daniela
diz que, além das receitas tradicionais, começam a surgir novas
descobertas, como o tucupi preto. “Trata-se de uma redução ao extremo do
tucupi amarelo, feita por índios ou descendentes. Esse era um produto
que estava sendo perdido”, conta a chef, que, com o auxílio da mãe e da
irmã, pesquisa novos alimentos na região norte do país.
O
restaurante Lá em Casa tem sido, ao longo dos últimos 45 anos, um
grande laboratório para o preparo e a divulgação da comida tipicamente
regional do Pará. Inspirado na culinária da avó de Daniela, Anna Maria
Martins, ele oferece pratos com quase tudo o que vem da mandioca:
maniva, beiju, tapioca, tucupi, farinhas, tucupi preto. “Só não usamos a
casca, mas, se descobrirmos um uso para ela, passaremos a usar”, conta
Daniela, que seguiu os passos do pai, Paulo Martins, chef de renome
internacional. Entre os pratos com tapioca do restaurante, destacam-se o
tacacá, que leva goma de tapioca, e o camarão empanado com farinha de
tapioca.
Além da tapioca, já consumida em todas as regiões
brasileiras, o tucupi (sumo amarelo extraído da raiz da mandioca) é
outra iguaria paraense que vem sendo usada com mais frequência na alta
gastronomia brasileira. “Existem formas interessantes que estão sendo
usadas por outros chefs, que suavizam o sabor do tucupi, para que ele
não fique muito agressivo ao paladar de quem não está acostumado, mas
que mantêm as características do produto”, diz Daniela.
Ela
acredita que a maniva (folha da mandioca), usada na produção do prato
típico conhecido como maniçoba, feito com maniva moída e cozida,
acrescida de carnes de suínos e bovinos, também deve ganhar novos usos
pelas mãos de chefs de outras regiões do país.
O exemplo
mais marcante é a tapioca, produzida a partir da fécula de mandioca, que
já caiu no gosto do brasileiro. De acordo com dados da Associação
Brasileira dos Produtores de Amido de Mandioca (Abam), nos últimos cinco
anos a produção triplicou, reflexo da popularização dessa iguaria
nordestina, que ganhou adeptos em todas as regiões brasileiras.
“Assim
como aconteceu com o pão de queijo, feito com fécula e polvilho azedo
de mandioca, que ultrapassou as fronteiras de Minas Gerais e ganhou o
mundo, a tapioca começa a ser difundida fora do país”, conta José
Eduardo Pasquini, vice-presidente da Abam.
Dados da Abam
mostram que o consumo das indústrias que fabricam amido é de 4 milhões
de toneladas de mandioca por ano, volume que rende 750.000 toneladas de
amido. Deste total, 150.000 toneladas são destinadas à produção de
tapioca, que respondia por 50.000 toneladas em 2012. “Atualmente,
existem mais de 300 marcas de tapioca no Brasil, uma quantidade
impensável anos atrás”, diz José Eduardo. São indústrias regionais que
apostam na consolidação do consumo nos próximos anos. Só no Paraná, um
dos maiores Estados produtores de mandioca, com safra estimada entre 3
milhões e 3,8 milhões de toneladas por ano, já existem 45 indústrias
produzindo diversas marcas de tapioca.
A fabricação da
tapioca é o quarto segmento que mais utiliza a fécula de mandioca
industrial, setor que, no ano passado, teve um crescimento de 35% no
faturamento, estimado em R$ 1,3 bilhão pelo Centro de Estudos Avançados
em Economia Aplicada (Cepea/Esalq/USP). A indústria de massa, biscoito e
panificação é a que mais demanda a fécula, vindo em seguida as vendas
no mercado atacadista e depois o uso pelos frigoríficos para a
fabricação de embutidos.
Fábio Isaías Felipe, pesquisador
do Cepea, acredita que a tendência é de crescimento do consumo de
produtos elaborados a partir da mandioca nos grandes centros, graças ao
valor cultural gastronômico e à funcionalidade do alimento, por não
conter glúten e ser livre de organismos geneticamente modificados (OGM).
“É um produto genuinamente brasileiro, o mais brasileiro dos
alimentos”, diz ele.
Valor da produção
Um
estudo elaborado pelo Ministério da Agricultura calcula que o Valor
Bruto da Produção da mandioca neste ano deve crescer 75% e atingir R$ 12
bilhões. O aumento se deve à alta dos preços da mandioca, que atingiram
valores recordes em 2017. Fábio Felipe explica que o cenário atual é
reflexo da retração do plantio a partir de 2015, quando os baixos preços
desestimularam os produtores.
O agricultor Vitório Fadel
Neto mantém quatro propriedades na região de Echaporã, no interior de
São Paulo, onde cultiva 1.700 hectares de mandioca de primeiro ciclo
(colhidas 12 meses após o plantio) e de segundo ciclo (colhidas entre 18
e 24 meses após o plantio). “Todo ano, colho em torno de 600 hectares.”
Combinar
variedades de ciclo normal e de ciclo longo foi a estratégia que o
produtor encontrou para manter a safra nos mesmos patamares todo ano. Em
2017, a colheita somará cerca de 30.000 toneladas de mandioca, que
serão entregues à Tereos Amido, de Palmital (SP). “Essa empresa era da
minha família e foi vendida à Tereos uns anos atrás. Continuo fornecendo
para eles”, conta Vitório, que também é agrônomo e presta consultoria
para a Tereos. “O produtor rural comercializa para as indústrias de
amido e dificilmente sabe qual será o destino da produção, se alimento,
produto químico ou papel”, avalia.
Tapioca hidratada
O
produtor Mauro Oliveira, que mantém 96 hectares cultivados com mandioca
em Oscar Bressani, também em São Paulo, tem percebido que o aumento das
vendas de tapioca no Brasil ajudou a manter os preços da mandioca em
patamares mais altos. Ele é um dos fornecedores da Casa Maní, empresa
que produz tapioca já hidratada em Tarabai (SP). Este ano, ele colherá
2.000 toneladas de mandioca, metade das quais será entregue à Casa Maní.
“Trabalhar em parceria com a empresa me ajuda a planejar melhor o
cultivo, pois temos garantia de preço mínimo em caso de queda brusca nas
cotações”, conta Mauro.
O produtor Jairo Parron, de
Itaguajé, no Paraná, também trabalha em parceria com uma empresa, a
Pinduca Alimentos, para quem fornece 80% de sua safra. Com experiência
de 20 anos no cultivo da raiz, Jairo acredita que qualquer produto que
leve a mandioca como matéria-prima em sua composição contribui para
melhorar os preços pagos aos produtores. Ele também mescla o plantio em
suas propriedades entre variedades precoces, tradicionais e tardias.
“Assim colho um pouco todo ano e mantenho a produtividade alta”, diz o
agricultor, que já foi prefeito, vice-prefeito e vereador em Itaguajé.
Jairo,
que 30 anos atrás trabalhava como diarista na colheita das lavouras de
seu pai e em outras da região, resolveu investir em cultivo próprio em
1997. Nos últimos três anos, vem incrementando a área de produção,
atualmente de 120 hectares. “Como o consumo de tapioca está ajudando a
manter os preços mais firmes, consigo planejar a expansão da área.”
Todos os paladares
Rica
em amidos, o que a torna uma excelente fonte de carboidratos, com baixa
quantidade de gorduras e livre de glúten, a tapioca, assim como o açaí,
ganhou nova “roupagem” ao chegar às regiões Sul, Sudeste e
Centro-Oeste. Enquanto no Norte e no Nordeste a receita da massa
contempla a farinha de mandioca crua misturada a água, que depois de
pronta leva os recheios de queijo coalho, manteiga ou coco ralado, no
Sudeste, por exemplo, há variações tanto na massa quanto no recheio. A
massa, além do amido da fécula da mandioca, pode levar também ovos,
espinafre ou grãos como chia e linhaça. Já os recheios são infinitos,
criados na medida da criatividade de quem prepara o prato, com versões
simples, como as nordestinas, que levam apenas manteiga, ou altamente
calóricas, como as que carregam morango com brigadeiro, criadas para
aliviar a tensão pré-menstrual (a famosa TPM) das mulheres.
Na
avaliação do professor e chef de cozinha Carlos Ribeiro, proprietário
do restaurante Na Cozinha – A Casa do Picadinho, que estuda a
preservação dos alimentos naturais, as primeiras versões da tapioca com
leite condensado surgiram na década de 1980. “Foi uma época de aumento
do turismo no Nordeste e as tapioqueiras começaram a acrescentar o leite
condensado ao recheio da tapioca para agradar os turistas. Isso virou
uma tendência”, conta o paraibano Carlos.
“Nas aulas que
ministro, percebo que as pessoas têm uma enorme necessidade de trocar os
ingredientes das receitas tradicionais. Não reprovo o uso de
ingredientes naturais”, afirma o chef, que serve como entrada em seu
restaurante a versão tradicional da tapioca, recheada apenas com
manteiga de garrafa. A farinha usada na produção da tapioca ele costuma
trazer quando viaja para a terra natal ou adquire nas mercearias
nordestinas instaladas no bairro do Brás, em São Paulo.
Tapiocarias
O
maior interesse pelo prato nordestino justifica o surgimento de
diversas tapiocarias (inclusive nos shoppings) em São Paulo. A tapioca
também entrou no cardápio de restaurantes famosos como Capim Santo, Casa
de Maria Madalena e Bananeira, entre outros.
Uma das
tapiocarias mais antigas da cidade é a Dona Tapioca & Cia, fundada
em 2003. “Meus pais viajaram para o Nordeste e, quando retornaram,
queriam investir em um novo negócio e resolveram apostar na tapiocaria”,
conta o empresário Lucas Padovan Sabino Ferreira. Atualmente, a Dona
Tapioca & Cia mantém um cardápio com cinco versões diferentes de
massas e 70 tipos de recheios.
O carro-chefe da empresa é
a tapioca salgada “sou italiano”, recheada com mussarela, tomate,
azeitona, orégano e azeite. “No começo, tínhamos de explicar o que era
nosso produto. Agora, todo mundo já conhece a tapioca”, diz o
empresário, que montou uma segunda loja no bairro do Ipiranga para
atender no sistema delivery (entregas). Para conferir características
paulistas ao seu negócio, Lucas criou diversos “combos” para atrair a
clientela. “Está dando certo. Em dias mais movimentados, as vendas
chegam a 100 unidades, o dobro do registrado dez anos atrás”, diz.
A
Pinduca Alimentos, do Paraná, especializada na produção de alimentos à
base de mandioca, como farinhas, polvilhos industriais e amidos,
percebeu alguns anos atrás um aumento nas vendas para as empresas do Rio
de Janeiro e São Paulo. “Fornecemos amido para cerca de 100 pequenas
indústrias e identificamos que algumas estavam fazendo massa pronta de
tapioca. Resolvemos investir em uma marca própria também”, diz Cesar
Fernando Paggi, diretor comercial da Pinduca Alimentos. Dentre os 57
itens que a empresa produz, 22 são à base de mandioca, sendo a tapioca
hidratada a mais recente inovação da companhia. “A diferença entre o
amido e a massa pronta da tapioca é que a massa é hidratada e com sal,
pronta para ser consumida”, conta.
Na avaliação de Cesar,
a facilidade no preparo da tapioca com a massa hidratada tem
contribuído para o bom desempenho das vendas do produto. “Basta aquecer a
frigideira e realizar o preparo. Não é preciso óleo e os recheios podem
ser variados”, conta. Antes desse tipo de produto chegar ao mercado, as
pessoas compravam o polvilho e tinham de hidratar a massa em casa e
depois peneirá-la.
Jairo Parron, de Itaguajé (PR), atua em parceria com uma indústria de amido
Parceria
Na
opinião do executivo, o consumo de tapioca é uma tendência que deve se
consolidar nos próximos anos. “Desde que lançamos nossa marca própria,
em 2014, registramos aumento entre 8% e 10% ao mês nas vendas do
produto”, calcula Cesar, que planeja anualmente as compras de mandioca
com os cerca de 40 produtores de mandioca que mantém como parceiros.
Cesar
aposta em crescimento ainda mais vertiginoso nos próximos anos. “Como a
popularização desse produto se deu em meio à seca no Nordeste, que
elevou os preços da mandioca, a tendência é que, com a regularização da
oferta nos próximos anos, os preços se acomodem um pouco e com isso a
tapioca ficará mais barata, sendo viável para mais consumidores”,
explica. Atualmente, 1 quilo da tapioca hidratada custa entre R$ 10 e R$
18 nos supermercados paulistas, dependendo da marca.
Para
Antonio Fadel, proprietário da Casa Maní, que produz a marca
Tapiocando, a consolidação do consumo da tapioca é irreversível. Com uma
experiência de mais de 20 anos na indústria de amidos, Antonio trocou a
produção de amidos pela da tapioca. Na fábrica que mantém na cidade de
Tarabai, em São Paulo, produz 15 toneladas de tapioca por dia. Além da
marca própria, a empresa também industrializa outras sete marcas para
outras indústrias.
Antes de apostar exclusivamente na
confecção de tapioca, Antonio fez alguns estudos para identificar os
entraves e desafios dessa cadeia de produção e entender seus
consumidores. Descobriu o consumo nacional, que se situava em 10.000
toneladas de tapioca em 2010 e cresceu para 58.000 toneladas em 2016,
que o cheiro azedo incomodava algumas pessoas, que os novos consumidores
se sentiam bem por comer um produto sem glúten e que a praticidade da
tapioca hidratada agradava a todos.
José Eduardo Pasquini, vice-presidente da Associação Brasileira dos Produtores de Amido de Mandioca (Abam)
Ele
investiu então na industrialização de um produto o mais fresco
possível, desenvolveu embalagens a vácuo de diversos tamanhos, que
aumentaram de 15 para 60 dias o prazo de validade do produto, criou um
canal de receitas usando a tapioca e realizou degustações do produto em
supermercados.
Os resultados? Excelentes. As vendas da
Casa Maní devem crescer entre 10% e 15% este ano. E Antonio não mede
esforços para manter o consumidor fiel ao produto. Além da embalagem a
vácuo, desenvolveu a barrinha de tapioca, comercializada em embalagens
de três unidades, e já está trabalhando para lançar o disco de tapioca
pronto. “Agrega valor e é ainda mais prático que a tapioca hidratada”,
conta.
Assim que for aprovado, deve – além de ser
oferecido em 80% do mercado nacional onde a Casa Maní já está presente –
ser exportado para Estados Unidos, Europa e Japão. “Já exportamos
pequenos volumes de embalagens a vácuo para localizações onde há colônia
brasileira”, diz.
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