Geografia de Carneiro
Seu
Zica tinha raiva do Surrão, um carneiro esperto, que estava sempre no
lugar errado, na fazenda, mas que era um presente ganhado pela sua
mulher e, por isso, não tinha como dar um sumiço nele. Dizem que
carneiro é burro, mas esse danado ia para onde não devia; importunava os
dois cachorros; perseguia o gato; chifrava as galinhas; molestava o
ganso; quase matou o pavão, xodó do patrão, mas quando queria algo, era
um dengo só.
- Esse à-toa tem parte com o Cão; de tão sabido que é - espinafrava a cozinheira.
Um
dia, Seu Zica acordou com a moléstia, um morcego caiu na cama, não
gostou do café, o queijo queimou, a esposa Nezilda estava ranheta, a
botina furou, tudo estava dando errado e ele estava bufando, quando
encontra o carneiro numa treta sem igual, esparramando ração pelo
terreiro, junto com os dois cachorros dos empregados. Aquilo já era
demais: o diabólico punha todo mundo a se perder.
- Pois que seja o que Deus quiser com tua alma - vociferou Seu Zica.
Pegou
o carneiro de 50 kg, estapeou-lhe as ventas, rangeu os dentes, enfiou o
bruto no porta-malas e sumiu na Caatinga, lado sul, por 10 quilômetros
bem esburacados e balançados. Desceu, soltou o bicho que estava olhudo,
zonzo, entrevado. Era o castigo merecido para uma vida de desatinos. Mal
se viu livre, Surrão desapareceu na Caatinga.
Sem
olhar para trás, Seu Zica rumou para o botequim de Zebedeu, onde
festejou o final feliz com boas lapadas da melhor aguardente que havia.
Bem
mais tarde, quase na hora do almoço, quando chega em casa, encontra
Surrão, tranquilo, bolinando as ovelhas perto do curral. A raiva sobe no
quengo. Nervoso, pegou o endiabrado, estapeou-lhe as ventas, rangeu os
dentes, enfiou o bruto no porta-malas e sumiu pela Caatinga, lado norte,
por mais de 20 km de veredas esburacadas, lascadas, onde jamais punha o
pé. Descarregou Surrão, tonto, enjoado, quase vomitando, olhos
vermelhos, sobre um lajedo. Mal se viu livre, Surrão desapareceu na
Caatinga, para se livrar do castigo.
Sem
olhar para trás, Seu Zica voltou ao botequim e, dessa vez, muito feliz e
tagarela, bebeu todas a que tinha direito. Mais tarde, quando chega em
casa, encontra o carneiro manhoso, com cara de risonho enfatuado.
O
sangue subiu na cabeça de Zica. Quase desesperado, vermelho como
pimentão, nervoso, pegou o molestado, estapeou-lhe as ventas, rangeu os
dentes, enfiou o bruto no porta-malas e sumiu pela Caatinga, lado sul
até a Braúna velha, pelo oeste até o Icó molengo, pelo norte até o
Juazeiro quebrado, nordeste até o Umbuzeiro das cabras, pelo boreste até
o Pereiro verde, pelo centroeste até a moita de Jiquirana, pelo
contraleste até a ruma de Licuri, pelo meio até a ramagem de Macambira,
pelo sol até a Quixabeira. Finalmente, subiu o rochedo cheio de
Mata-Lobo, Timbó e Vassourinha.
- Se não morrer de fome, vai morrer por planta venenosa! - sorriu Zica.
Cansado
de tanto dar voltas, por mais de 40 km de veredas por onde nem o diabo
havia passado, quando percebeu que nem ele mesmo sabia onde estava, já
zonzo pelo frenético ziguezaguear, desceu, abriu o porta-malas e viu
Surrão quase morto, despencado, língua de fora, olhos esbugalhados. Seu
Zica deu um enorme sorriso:
- É isso que você merece, seu peste.
Descarregou
o brutamontes na areia ardente. Mal se viu livre, Surrão desapareceu na
Caatinga, trançando as pernas, para se livrar do castigo.
Cansado,
Seu Zica, senta na ponta do lajedo, suspira de alívio no meio daquele
mundão sem dono, onde antigamente se escondiam cangaceiros legendários.
O
sol foi baixando, baixando, baixando, o dia se finou, as vacas
retornaram ao curral, os chocalhos tilintavam no terreiro e, já de
noitinha, a esposa recebe um telefonema de Seu Zica.
- Nezilda, por acaso o safado do Surrão está por aí?
- Deixa eu ver - e se dirigiu para a janela que dava para o terreiro grande.
Daí a pouco, retornou:
-
É dos últimos. Está chegando. Está cambaleando. Está suado. Tropeçando.
Quase caindo. Está todo encriquiado, pra lá de xinfrim. Parece doente.
Por que será?
Do outro lado, muito longe, vem a voz do marido cansado.
- Mulher, pega esse filho do Cão, bota no telefone, porque eu estou perdido e só ele sabe o caminho de volta.
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