sábado, 16 de fevereiro de 2013




Boa Leitura   Cafezinho da confusão



Logo cedo, os animais partiam em disparada, como se fossem catar ouro lá no fundo da pastagem, pertinho do horizonte. Espetáculo que todo mundo gosta de ver: a miunçada querendo curtir a vida total. Na tardinha, hora de recolher, os mais agitados agitam a cauda como passarinho e, de repente, perdem as pernas, cambaleiam, não entendem o que está acontecendo e puff - caem ao chão!
Sem entender, o pastor trata de acelerar os mais tardios e eles, de fato, aceleram, mas logo estão tombando, alguns estrebuchando ali mesmo.
- Xiii! Não pode mexer com os bichos que eles caem - afirma Zezinho Durão.
Não houve jeito. Depois de perder dezoito animais, em três dias, o melhor era buscar o veterinário da cidade. O funcionário chegou, bufando: “Doutor, é pra vir logo, pois tem bicho morrendo um atrás do outro”.
O velhote pegou a maleta preta e logo chegou, cachimbo na boca, ar de sabedoria milenar, olhou e viu, ligeiro, vaca morta, ovelha morta, cabra morta, apertou um bicho inchado, e deu o veredito:
- Aposto cem pratas como tem cafezinho...
O fazendeiro deu um salto:
- Cafezinho? Aqui? Nunca.
O veterinário arregalou os olhos pela raiva mal contida do fazendeiro, mas este não parou a fúria:
- Nem cafezinho, nem cafezão, nem erva-café, nem mato-café. Nem erva-rato, erva-gato, nada disso. Nesta fazenda não tem erva matadeira, pois passamos um pente-fino, tim-tim por tim-tim..
- Bom, o senhor me perdoe, mas a Rubiácea não brinca em serviço e deixa a marca da botina, como todo bandido. Está escrito aqui no bucho da ovelha que é Rubiaceae palicourea    marcgravii. Se não for, eu perco as cem pratas.
Enquanto saboreava o cafezinho com pão de queijo de Dona Nena, o veterinário de setenta anos ia explicando:
- Olha, o cafezinho provoca envenenamento, morte súbita, geralmente por nada, não tem sintoma, nada de nadinha. Os animais comem a planta, ficam agitados, começam a correr, o sangue circula e os mais ligeirinhos são os que morrem primeiro. Por isso, o melhor é não mexer com a bicharada.
- Uai, doutor, e bicho morre sem aviso?
- Nem aviso, nem nada. Simplesmente desliga da tomada e tchibum! - tá mortinho da silva! O veneno provoca um bloqueio geral na atividade celular. Não tem lesão, nada. Pode crer que mudaram os animais de cercado.
- Aqui ninguém muda bicho de cercado, sem receber ordens.
- Pois a mortandade está dizendo que tem fugitivo, tem buraco de cerca, tem cafezinho bem nascido e crescido.
O vaqueiro, cheio de medo de levar uma espinafrada, foi se aproximando, caprichando no linguajar:
- A gente solta os animais, cedo, e eles vão até o córrego beber água. Depois, se espalham. Quando a gente vai buscar, uns correm e caem que nem pedra.
- É cafezinho - sentenciou, de novo, o velho e respeitado veterinário.
- Pois eu ajudo nas roçadas, palmo a palmo, e posso garantir: não tem ca-fe-zi-nho nesta fazenda - respondeu o fazendeiro. “Deve ser cobra e precisamos de um benzedor. E tem mais: eu topo as cem pratas. O senhor, como promotor e acusador, pode mostrar as provas do crime”.
O velhote suspirou, pois apareceu trabalho pesado, mas não esmoreceu:
- Tá bom, me arranje um chapéu de palha que vou conhecer tudo, fazer uma benzeção contra cobra e - claro! - vou descobrir o cafezinho.
Muitas vezes, para ficar mais compreensível para o sertanejo, o velho veterinário dramatizava uma benzeção com algumas ervas catadas e pisadas, óleo, urina, fumaça, esfregava nos bichos e sarava. Ele sabia que a cura sempre teria sido por conta da injeção bem aplicada, mas para que perder tempo explicando muita coisa para quem não estava à altura de entender? Cada quero com seu lero, ou cada lé tem seu cré.
Andaram, andaram, viram o alto da pastagem bem feita, nada de cafezinho, nem sombra de qualquer outro tipo de erva. O pasto era uma beleza. Foram ao bosque, ao riacho, onde todos bebiam - nada de nada!
- Pois bem, terminou a propriedade, o senhor me deve as cem pratas, pois não tem cafezinho e, no entanto, a bicharada está morrendo. O senhor é dono da bíblia, mas essa bíblia está errada.
- Hummmmm! - grunhiu o veterinário, esfregando o queixo por onde escorria o suor que descia da testa. Deu um grande suspiro, e rematou:
- A bíblia nunca erra, se não que diabo de bíblia seria essa? Pois o patrão volte para a casa grande, ordene a galinha do almoço, que eu vou dar uma espiada mais aprumada por aqui.
Dito e feito, a turma se dispersou e o veterinário podia começar sua maratona de detetive buscando o local do crime. Começou a percorrer cada metro da cerca junto do córrego. Não demorou muito e descobriu um arame afrouxado e capim amassado.
- Ah! eis o portal do inferno.
O córrego era pequeno, havia caído uma palmeira, que servia de pinguela para as cabras. Curiosas, elas passavam para o outro lado. O mesmo fez o experiente veterinário e, na terra do vizinho, logo descobriu uma capoeira no pé do rochedo e gritou:
- Eureka! Um monte de cafezinho.
Recolheu alguns talos roídos da erva maldita e voltou, feliz da vida, para a casa grande. Chegando, fez a festa:
- A bíblia não erra. Arame frouxo, animais espertos, foram para o outro lado, cortaram erva e voltaram. As vacas comeram alguns talos e as ovelhas e cabras se empanturraram. Deu no que deu. Eu estava certo e o nobre fazendeiro estava errado.
- Eu? Errado? Nada disso. O ilustre veterinário disse que o cafezinho estava nas minhas terras. E não estava.
O motorista, calado até agora, sentenciou:
- Pois é: cabrita tem medo de gota d´água e quem diria que elas iriam atravessar um rio, para pegar um cafezinho no vizinho, não é mesmo?


(Adaptado de “O galinhista”, Edson Pereira, Goiânia, 2010, Funape, IPTESP, p. 63, com autorização)

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